A legalização das drogas
Por Sérgio Martins
A JCP realizou recentemente uma Iniciativa Nacional
sobre a Toxicodependência. Um dos temas mais focados foi a
legalização das drogas. As reacções divergiram, mas uma
sobressaiu nas palavras do Presidente do Serviço de Prevenção
e Tratamento da Toxicodependência, Dr. João Goulão:
«Liberalização e venda controlada pelo Estado... tenho grandes
dúvidas.» (Avante,
27-01-00)
«Grandes dúvidas»
não significará exactamente um «não», e podem ir de encontro
a uma necessidade de estudar/debater mais profundamente as
propostas relativas à legalização das drogas, sob controlo
estatal (não estamos a falar de comércio livre ou
liberalização).
Este debate deve partir da análise da evolução e resultados
das actuais políticas proibitivas. Uma análise atenta à
realidade poderá demostrar que:
a) A ilegalidade das drogas não tem um efeito dissuasor sobre o
os consumidores. O consumo de drogas está socialmente
generalizado na juventude. Todos nós conhecemos, mesmo no nosso
grupo de amigos, muitos consumidores de drogas (principalmente
haxixe). Apesar de ilegais, podemos comprar drogas, a qualquer
hora do dia, tanto em bairros citadinos como aldeias rurais. É a
isto que podemos chamar de um autentico mercado livre. Por outro
lado, a proibição funciona como um apelo ao consumo por ir de
encontro à rebeldia juvenil e ao seu gosto por desafios;
b) Os narcotraficantes são mais eficazes que as polícias. Por
ano, 400 biliões de dólares a nível mundial e 200 milhões de
contos em Portugal, um dos pilares do desenvolvimento
capitalista. Estes $$ representam um poder mafioso
incomparavelmente superior às policias e governos, muitas vezes
controlados e corrompidos por esses milhões. Dos poucos casos
descobertos, lembremo-nos do pelotão de segurança da PSP-Porto,
julgado em 1996 por corrupção e abuso de poder. Mas se os
grandes tubarões conseguem fugir da lei, as polícias também
não conseguem destruir as redes de distribuição, que fazem dos
consumidores traficantes, estando sempre em auto-renovação, ao
mesmo tempo que é criada uma pressão no sistema para criar
novos consumidores;
c) A prevenção primária nunca funcionará plenamente se
continuar baseada no combate ao consumo, recorrendo a moralismos
de abstinência ineficazes numa sociedade em que o consumo é
generalizado.
d) Os custos da situação actual, danos físicos, psíquicos e
sociais associados ao uso das drogas atingiram níveis de ruptura
insuportáveis. A ilegalidade empurra os consumidores para a
marginalidade, para longe da ajuda, introduzindo - os num meio
criminoso que mistura no mesmo mercado drogas leves e duras. Eis
o principal motivo que conduz os consumidores de drogas à
toxicodependência. A esmagadora maioria dos consumidores de
drogas leves nunca passaram (nem passarão) para as pesadas, e os
que o fazem é por verem facilitada a compra de drogas duras no
mesmo local onde compram as leves. Por outro lado a ilegalidade
é responsável por condições de consumo muito degredadas,
impedindo o controle da qualidade das drogas e é responsável
por situações de risco como a contaminação por doenças
infecciosas. Finalmente, a ilegalidade é responsável pelo
preço exorbitante das drogas, conduzindo à criminalidade como
meio para se manter o consumo. Resultando numa pequena
criminalidade que se torna o centro de acção de policias e
tribunais, que tendem a menosprezar a investigação e julgamento
da grande criminalidade praticada pelas classes socais mais altas
(contribuindo para o descrédito do sistema policial e judicial).
Tudo indica que o proibicionismo falhou e dificilmente será
eficaz. Mas mais grave é que parece ser parte integrante do
problema e cúmplice do seu agravamento. Um exemplo perfeito da
perversão do proibicionismo é o caso do ecstasy. Produzido
inicialmente na Holanda por estudantes de química que
utilizavam-no nas raves, começou a dar que falar quando em 1988
uma jovem dançou até morrer desidratada. Sob pressão da
direita o ecstasy foi ilegalizado. E o resultado imediato foi que
o crime organizado pegou na sua produção, aumentou-a 500 vezes,
assim como aumentou o comércio, a difusão, os preços, e os
produtos com misturas cada vez mais perigosas e os riscos
associados. Perante tais resultados negativos, o governo
holandês recuou e actualmente o consumo de ecstasy voltou a ser
tolerado, existindo inclusive laboratórios ambulantes que atraem
os consumidores para testar a qualidade da droga (procurando
evitar o consumo de drogas quimicamente mais perigosas).
A legalização
Falando da Holanda,
convém comparar o consumo de haxixe e seus derivados neste país
onde o consumo é tolerado e o comércio é praticamente legal, e
os EUA, onde são praticadas as políticas mais proibicionistas e
repressivas do planeta. Nos EUA, 40% dos jovens consomem
regularmente cannabis e derivados, enquanto que na Holanda esse
número ficasse pela metade. Tudo indica que a legalização não
potencia um crescimento do consumo, mas sim o contrário. Aliás,
na Holanda não foi só numero de novos consumidores que desceu,
mas também o de toxicodependentes e o de mortes por Sida e
overdoses. A Legalização parece cumprir o que o camarada
Joaquim Santos (AGIT, Janeiro de 2000) reivindicou: «Todas as
medidas por nós tomadas, devem ir no encontro de fazer recuar o
fenómeno da toxicodependência e nunca o contrário».
Em primeiro lugar, é necessário ter em conta que o consumo de
drogas é um comportamento que tem acompanhado a humanidade ao
longo dos tempos e, mesmo com as características que hoje
apresenta, ele tenderá a perdurar. O problema não é o
uso/consumo, mas o abuso/toxicodependência. Mesmo em sociedades
comunista (desalienadas, evoluídas desportiva e culturalmente,
não repressivas) o consumo de drogas continuará, porque há
sensações que as drogas nos dão que continuarão a ser
procuradas. Não é pois adequado traçar como objectivo
(impossível) da intervenção a erradicação do consumo, mas
sim o evitar os abusos e a toxicodependência, contendo o consumo
dentro de níveis socialmente toleráveis e reduzindo os seus
efeitos sanitários e sociais.
A legalização não é uma filosofia moral de resignação, mas
sim uma estratégia política global e pragmática para controlo
das drogas, que analisa a realidade, olha em frente e
associando-se à melhoria social e económica das condições de
vida, pretende:
a) Respeitar o direito individual ao corpo. O Estado Democrático
tem de respeitar as opções individuais e privadas dos
cidadãos, assim como respeitar um direito penal que deve apenas
reflectir a protecção de bens jurídicos e não a preservação
de uma moral. É obvio que em direito a repressão só deve ser
admitida sobre um indivíduo para impedi-lo de prejudicar
terceiros.
b) Eliminar o mercado clandestino, desviando depois as verbas da
repressão para a prevenção;
c) Reduzir os riscos associados ao consumo, separando drogas
leves e duras, e garantido a sua qualidade;
d) Reduzir o número de consumidores em especial os jovens,
dificultando a entrada de novos consumidores, controlando melhor
o acesso ao circuito de distribuição;
e) Promover uma pedagogia das drogas, valorizando a temperança e
a utilização controlada de substâncias dentro de limites não
nocivos e dando a conhecer os riscos previamente à entrada do
sistema.
Assim, a organização do mercado legal deve ser enquadrada em:
a) Monopólios nacionais (a regular pelos Estados) para a
produção, importação e distribuição;
b) Políticas de venda a preços estudados para eliminar os
traficantes e orientar os consumidores para produtos menos
nocivos;
c) Exclusão do direito de marcas e publicidade;
d) Informação clara ao consumidor sobre os perigos de cada
droga (e não um simples alerta de moderação), procurando
promover uma «cultura dos limites e auto-responsabilização»,
só possível de ser interiorizada se decorrer no âmbito de um
contexto cultural não marginal e não moralista.
Poderá esta análise ao proibicionismo estar errada? Poderão
estes objectivos da legalização não se concretizar? É isto
que temos de debater... O que está em questão é demasiado
importante para que se fuja a este debate...