A busca desesperada de esperança
Por Zillah Branco
Poeticamente se tem falado sobre o novo milénio como
sendo a era da espiritualidade em que os povos, tendo resolvido
os seus problemas materiais de sobrevivência, se voltam para a
solidariedade humana e a investigação filosófica do sentido da
vida.
É um quadro bonito,
o de uma humanidade defensora do património natural e
histórico, preocupada com o bem estar colectivo, desprendida e
generosa, dedicada a aperfeiçoar os métodos de ensino e de
tratamento da saúde para proporcionar a toda a população os
recursos da educação e da medicina hoje restritos à elite.
Gostaria de poder acreditar nesta interpretação, mas vivo num
país subdesenvolvido onde a realidade demonstra exactamente o
contrário, com uma crescente concentração de renda que coloca
a grande maioria longe dos benefícios traçados pela
Constituição. O que aqui se vê é a busca desesperada de um
caminho qualquer que conduza à esperança de vida perdida. É
bem materialista a preocupação com a sobrevivência, apesar da
capa religiosa com que é vestida. Abrange a maioria da
população pobre e atinge a nova classe média que perde o pé
na sociedade, vitimada pelo desemprego e o consumismo. Eles
apenas procuram outro Deus que esteja ao seu alcance.
No Brasil, para a classe média intelectual, as religiões
tornaram-se práticas folclóricas, sobretudo no confronto com as
igrejas oficiais que amarraram Deus a uma Terra que não se
move e a uma elite que não se corrompe. Numa
afirmação de rebeldia individual a esta ficção que ainda
conta com o respeito e a protecção do sistema, muita gente
adere aos rituais de umbanda e às práticas de magia negra em
grandes espectáculos que os media divulgam e promovem.
Pouco ou nada tem a ver com crença religiosa ou filosofia de
vida. As praias ficam cobertas de oferendas a Iemanjá, deusa das
águas, dos que pedem benefícios ou agradecem o que receberam
antes. Muita gente adere pelo encantamento do cenário que reúne
pessoas de todas as idades e condições sociais, vestidas de
branco, irmanadas num culto pagão sem chefia, livre das
restrições institucionais. É bonito, exótico, agride as
tradições da chamada civilização dando uma sensação de
liberdade ao que se afirma pela rebeldia.
As seitas
Diferente é o caso de grandes massas que abraçam as novas
Igrejas nascidas nos Estados Unidos e que se expandiram por todo
o mundo na tentativa de sobrepujarem o catolicismo e o
protestantismo tradicionais. As várias seitas evangélicas
organizam formas de assistência social que incutem hábitos de
vida e linguagem própria caracterizando os seus seguidores com
um novo padrão de comportamento que os distingue dos demais.
São formadores de opinião que disputam o poder político e
negociam os votos em véspera de eleições.
Há os dois casos, os que usam o símbolo religioso como status,
e os que realmente procuram uma tábua de salvação que sirva de
apoio dentro da sociedade em que se sentem órfãos. São
agrupamentos, ou comunidades como hoje preferem chamar,
com funções sociais bastante claras.
Por toda a parte, no Brasil, vêm-se os anúncios de «Jesus
voltará». São grandes cartazes nas ruas, adesivos nos carros,
frases nas roupas. Em São Paulo os mais realistas, ou os
cínicos que pretendem mostrar que estão acima das crenças,
acrescentam a frase: «Que venha armado!» A ironia não revela
cepticismo, mesmo no caso do que pretende disfarçar com cinismo.
É o hábito dominante de fazer graça para amenizar a tristeza e
de estabelecer laços de solidariedade entre os que crêem e os
que não crêem. Ou ainda, a preocupação em deixar todos os
caminhos abertos, já que não se tem certeza de nada.
Procura-se Deus, (ou deuses, já que as crenças misturam o
cristianismo com outras religiões politeístas) por toda a
parte. Não é um passo adiante, no sentido da humanização e da
investigação filosófica, mas vários atrás depois de ter sido
esgotada a fé na condução humana da sociedade. Significa a
capitulação da consciência de cidadania e a renúncia aos
valores do conhecimento acumulados pela humanidade nos dois
milénios da civilização ocidental.
Questão de sobrevivência
O brasileiro será
mais místico que outros povos? Penso que não se trata de uma
cultura religiosa e sim de uma condição de sobrevivência numa
sociedade hostil. É impossível suportar uma vida sem qualquer
esperança. Se o panorama social e económico fecha todas as
portas, principalmente com o empenho da elite em destruir a
utopia que animava a participação popular na luta pelo
desenvolvimento do país, a válvula será a crença religiosa.
Acrescente-se ainda uma história nacional de convívio e
miscigenação das mais diferentes culturas com filosofias de
vida contraditórias, ao longo de muitos séculos. É um povo
aberto, receptivo, sem um padrão cultural consolidado uniforme e
com todas as incertezas possíveis.
Esta diversificação religiosa separou o Deus das pessoas,
do Deus das Igrejas, na consciência popular. Não
consideram que a vida infernal e as injustiças constantes que a
sociedade impõe derivem da vontade divina. Confiam no socorro
paternal, pelo menos depois da morte. Assim, têm uma crença que
os alivia dos medos quotidianos e o amor a Deus é a expressão
de esperança, a única que resta.
A competição institucional entre as Igrejas não consegue
levantar barreiras de oposição entre os seus adeptos. Como
pouco ou nada se conhece acerca dos cismas que dividiram
historicamente as religiões, a adesão a uma ou outra Igreja
depende mais da proximidade do templo e da capacidade de
proselitismo que desenvolve junto à população. Há casos de
mudança de crença e de Igreja em função da migração
interna. Num país pobre e sofrido como o Brasil, o papel de
assistência social de uma Igreja é determinante para reunir os
seus adeptos. Acima de todas está a esperança traduzida
no nome de Deus ou, mais familiarmente, de Jesus, como um
fetiche. Mesmo as religiões africanas ou dos índios já estavam
bastante misturadas com os conceitos cristãos trazidos pelos
europeus, sem que se estabelecesse qualquer ordem hierárquica
entre as imagens divinas. O convívio é pacífico e aponta para
a união. Não é nenhum absurdo a sequência de divindades
chamadas na hora do aperto: «Jesus Cristo, Virgem Maria, Saravá
meu Santo!», que pode vir acompanhado até de um «My God!».