Relendo Esteiros
Por Manuel Gusmão
O Avante! homenageou
já Soeiro Pereira Gomes. Gostaria, entretanto, de voltar ao seu
livro Esteiros, para falar do modo como, na sua construção, se
manifesta aquilo a que chamarei uma responsabilidade política da
forma, e que julgo ser um dos factores da perenidade literária
do romance.
O livro organiza-se em 4 capítulos que têm como título os
nomes das quatro estações do ano, ordenadas do
"Outono" ao "Verão". Duas anotações, na
abertura do 1º capítulo e na do último subcapítulo do livro,
indicam-nos que o ciclo temporal abre e fecha em Setembro, por
ocasião de uma feira anual, mas esse retorno dá-se numa
diferente situação. Cada capítulo está por sua vez organizado
em sequências ou subcapítulos numerados. Reparamos, então, que
o seu número revela uma clara ordenação: o primeiro e o
último capítulos têm 5 subcapítulos; os capítulos interiores
têm 4. Podemos ainda verificar que cada um desses subcapítulos
comporta uma divisão interna em segmentos, assinalados por
intervalos maiores na página. Esta segmentação, que tem a ver
com mudanças na acção contada ou no modo de contar, apresenta
também uma notável regularidade: os capítulos ímpares ( o 1º
e o 3º) comportam 11 segmentos, e os capítulos pares (o 2º e o
4º) comportam 10.
Podemos então fazer uma espécie de primeiro mapa do romance: o
1º capítulo, "Outono", tem 5 subcapítulos, 11
segmentos, e demora 41 páginas; o 2º, "Inverno", tem
4 subcapítulos, 10 segmentos e 57 págs.; O 3º,
"Primavera": 4 subcapítulos, 11 segmentos e 36 págs.;
e o 4º e último capítulo, o "Verão", tem 5
subcapítulos, 10 segmentos e 46 págs. Podemos assim dizer que o
romance, na sua arquitectura, combina uma manifesta e complexa
regularidade com uma também evidente irregularidade, que se
verifica sobretudo na dilatação e na contracção do tempo
narrativo e dos acontecimentos narrados. As regularidades na
arquitectura do texto articulam-se assim com uma diferenciação
que é narrativa e também rítmica.
Mas há coisas mais interessantes, ligadas a esta arte (ou
técnica) da composição. As estações que ritmam o ciclo anual
são um dos modelos da nossa experiência sensível do tempo: tal
como o ciclo dia e noite, elas configuram o tempo cíclico, que a
literatura muitas vezes contrapõe a um outro modelo temporal que
é o do tempo linear e irreversível, orientado para um fim que
é a morte. Nessa contraposição, o tempo cíclico é o tempo da
esperança: depois da noite vem o dia, depois do inverno vem a
primavera. Em Esteiros, encontramos algo de parecido com
isso. Mas não só. Começar no Outono (fase de declínio) para
acabar no Verão (estação da plenitude solar) parece indiciar o
movimento de uma esperança ou de uma promessa: e de facto o
romance termina, em aberto, sobre o desejo e a procura de uma
liberdade a vir. Mas o que é admirável é que este modelo de
representação do tempo natural é em parte mantido e em parte
submetido à dimensão social da vida humana: as estações do
ano são e não são as mesmas, de acordo com a situação
e a experiência social das personagens. É que o
"Verão" de Esteiros abre, logo no 1º
parágrafo, sobre o negro, "cor" surpreendente para tal
estação, mas que é a cor do trabalho penoso e explorado, da
vida oprimida que é contada. O "Verão" de Esteiros
conta, é certo, o fugaz banho dos garotos no rio, numa pausa do
trabalho; mas, sobretudo, abre contando cenas de trabalho em
situação de grande violência. Este aspecto fulcral da
composição do romance está aliás representado - a tempestade,
as cheias contadas no "Inverno", são desastre,
naufrágio, morte e solidariedade, para aqueles que as sofrem no
seu trabalho ou na busca dele, e são espectáculo "da
natureza", para aqueles que as vão ver , "de
cima" e "de fora".
É claro que estes aspectos da composição do livro se combinam
com outros modos de construção deste mundo ficcional, de que
apenas poderei indicar um outro. Esteiros é um romance
cujo herói é, ao mesmo tempo, colectivo e individuado.
Graças a uma grande sobriedade de meios e a uma segura agilidade
no contar, os rapazes (e alguns adultos) adquirem uma
individualidade própria, complexa e não idealizada; o
que significa que a sua comum ou próxima condição social não
apaga a espessura concreta do humano, feita de generalidade e de
particularidade. Como o disse, em 1950, Adolfo Casais Monteiro,
eles não nos atraem apenas por serem vítimas, mas porque são,
pelo menos em parte, actores dos seus destinos.