As liberdades religiosas

Por Jorge Messias



Subiu à cena no teatro nacional a opereta das liberdades religiosas. Encenação de luxo e intérpretes à altura. Mas o libreto escolhido é uma autêntica miséria!

Com efeito, a proposta de liberdade religiosa que o piedoso governo socialista perfilhou deve ser lida como simples base comercial de um acordo antecipadamente garantido.
À mesa das negociações vão sentar-se irmãos em comunhão de ideias e objectivos.
As máquinas de calcular irão substituir o crucifixo.
A palavra «soft», vazia de conteúdo, será rainha da reconciliação.
E o que poderia constituir excelente ponto de partida para um debate nacional em torno do papel da igreja católica portuguesa, dos seus interesses, dos seus direitos, das suas garantias, ficará reduzido a simples combinações entre colarinhos brancos e togados.
Revisão da Concordata? Certamente que sim, respondem a uma só voz o Vaticano e o episcopado português. Revisão negociada, minuciosa, apoiada (como agora se diz), com cedências mútuas e compensações. «Vai ser um processo moroso» - adverte desde já o Núncio Apostólico em Lisboa. E sem dúvida que assim será.
São majestosos e majestáticos os interesses em jogo. Em dinheiro, em poder político e em cruzamento de influências. Coisas que exigem cuidado e tempo de decisão...
Nas tribunas, os políticos hão-de discursar sem nada de novo acrescentarem. No mercado, igreja e estado ganharão espaço para arrecadar mais lucros. Por entre os bastidores, em bicos de pés e de mão estendida, perpassam os pastores de outros rebanhos. Invisíveis coros de «lobbies» dão um toque místico à actuação do elenco.
Lamentável é que assim seja? Mas quem se poderá admirar com o que vê? Ou não saberemos nós em que mundo é que vivemos?
O cidadão médio da nossa sociedade vive e age como uma folha ressequida, falando como se acreditasse ainda nos valores em que alguma vez acreditou. É católico, mas o cristianismo não pesa nos seus comportamentos. É protestante, mas a Reforma não lhe diz coisa nenhuma. É comunista e, quantas vezes - sejamos corajosos! - a sua prática nada tem a ver com os ideais que moveram tantos milhões de outros homens nas lutas pela transformação do mundo.
Esta é a grande vitória do capitalismo moderno. Quando numa nação, como a portuguesa, surge um tema explosivo - tal como o debate sobre a Concordata poderia desencadear - os cidadãos e as badaladas «forças vivas» ficam anestesiados. As pessoas, porque temem o desconforto da mudança. As instituições, por preferirem as vantagens de um estado de coisas baseado nos entendimentos tácitos e nos discursos subtis. Perdeu-se, creio que provisoriamente, o sentido e a força da ruptura revolucionária e da pedagogia da acção popular.
Dentro de poucas semanas este assunto terá sido esquecido. O Estado terá o seu Orçamento, a Igreja a reforma de estatuto que lhe convém. Ambos as suas clientelas, políticas e religiosas, se sentirão mais ricas, mais irresponsáveis e mais poderosas.
Chegou-se a um novo entreacto. Se nos aninharmos na cadeira, a saborear um café quentinho, nunca mais de lá sairemos.


«Avante!» Nº 1369 - 24.Fevereiro.2000