A qualidade de morte


Ao cruzar um acidente na estrada, é comum os carros abrandarem para deitar uma vista de olhos. A curiosidade manda mais do que a prudência e há quem espreite pelos intervalos dos dedos o sangue e o destroço do desastre. Não há nada como uma catástrofe para abalar os nervos, tanger as emoções, aguçar sentimentos, suscitar, pelo menos, uma desmedida atenção.
Por isso, mortal como toda a gente, me impressionei com a morte de quatro pessoas na auto-estrada, a centena de feridos e a muita sucata para remover.
Pela mesma altura, nos Alpes, mais a Leste deste descontentamento, um grupo de turistas foi devorado por uma avalanche. Não deixei de comparar estes dois géneros de catástrofes e, logo depois, de lembrar mais outras que são sempre notícia. Não foi há muito que, a Ocidente, na Venezuela, derrocadas de lama sepultaram nas suas casas muitos habitantes.

Dei-me conta de que acabava por fazer comparações entre a qualidade da morte e a qualidade de vida. De um extremo ao outro. Das favelas onde a vida miserável assenta fragilmente na lama sempre prestes a devorar os moradores aos píncaros do turismo, onde uma finíssima neve sepulta os ricos amantes das emoções fortes. Aí no meio da escala, numa estrada à beira-mar plantada, os portugueses morrem a caminho do trabalho, entre destroços eriçados de ferro. Vítimas provavelmente da falta de condições e do pouco caso que se faz da segurança do cidadão e certamente do espírito de «ultrapassagem» que perdura e parece confirmar que um certo «cavaquismo» não morreu na Ponte, apenas anda por aí, desorientado.

Esta ligação, talvez forçada, entre qualidades, não deixa de contar com as «quantidades» de que qualidade se alimenta. E há dias, à conversa com emigrantes portugueses em Paris, comparavam eles as quantidades de lá e as de cá. Perguntaram-me sobre o salário mínimo; sobre o subsídio de desemprego; sobre o trabalho precário. E, por fim, deitaram fora as esperanças de um regresso rápido. Contrariando as contas do beatíssimo Guterres que desta vez se revelou excelente manipulador de números. Anunciando elevações «50 por cento» maiores do que no resto da Europa, Guterres pretendeu fazer-nos aceitar que quem cresce um centímetro quando mede metro e meio, está a caminho de tornar-se um gigante comparando com meio centímetro ganho por quem já vai nos dois metros...
As quantidades assim não vêm em abono da qualidade de vida. Se o Estado, por exemplo e como foi anunciado, despedir 20 mil trabalhadores a recibo verde e os voltar a contratar mais adiante, vai gabar-se de que o emprego cresceu com mais 20 mil postos de trabalho, fazendo entrar nas contas os despedidos e os contratados. Porque «ambos» trabalharam... — Leandro Martins


«Avante!» Nº 1369 - 24.Fevereiro.2000