Na raia
da TV possível



No ano não tão distante quanto parece de 1936, guardas civis espanhóis ao serviço da rebelião franquista atravessavam a fronteira alentejana, com a amável aquiescência do fascismo português, e aprisionavam fugitivos republicanos, ou suspeitos de o serem, que, de novo do lado de lá da raia, iam acrescentar-se aos milhares de homens, mulheres e até crianças, assassinadas na zona de Badajoz para que a Espanha, limpa de «rojos», pudesse voltar a consagrar-se ao serviço do Cristo Rei e da oligarquia há séculos dominante. Foi, é claro, uma das mais vergonhosas páginas da história de Portugal, mas poucos seriam decerto os que não a desconheciam: a cumplicidade infame de Salazar com o crime de Franco foi mantida durante décadas em lume brando de ignorâncias ou, quando muito, coberta por um piedoso manto de «compreensões». Veio agora «A Raia dos Medos» revelar ao país a dimensão da ignomínia e, sem que seja o único, esse é sem dúvida o mais significativo dos seus méritos.

A série em transmissão na RTP1, escrita por Francisco Moita Flores (que assim se afirma como um dos mais importantes, se não o mais importante autor português para televisão) e realizada por Jorge Paixão da Costa, poderia ser encarada, com uma boa dose de difícil optimismo, como marcando uma viragem nas opções da RTP no chamado «prime time». A questão é que «A Raia dos Medos», para além de outras virtudes, se enquadra sem favor num entendimento ao «serviço público» que integre, como é necessário, a promoção cultural e cívica dos cidadãos. A informação acerca da história portuguesa no século que agora finda é cultura, por muito que isso pese aos que sustentam ser apenas cultura «pura», aquilo que não os incomoda e, para mais, só chega a minguadas franjas. A revelação dos crimes fascistas praticados em solo português, quer por nacionais quer não, é contribuição para a formação cívica que entre nós pouco ou nada se pratica. Pode-se lembrar, e com verdade, que também as estações privadas podem fazer serviço público do mesmo teor, e até que a anunciada série baseada no livro «Até amanhã, camaradas» vai nesse sentido. Porém ao passo que uma estação como a SIC resolve ter uma iniciativa dessas talvez para amenizar a sua imagem de «TV Pimba», talvez por ter sabido de «A Raia dos Medos» e não querer ficar atrás, talvez por qualquer outra razão mas de qualquer modo porque lhe apetece e nada a obriga a isso, uma estação pública tem o dever de o fazer e, mais ainda, de não actuar para efeitos de sinal contrário. Quer isto dizer que não pode ter uma acção estupidificante, desculturalizante e eventualmente encobridora de crimes, sem incorrer em autênticas ilegalidades. O que não é irrelevante mesmo numa sociedade onde não é costume cumprir as leis incómodas, a começar pela Constituição da República.


Quando é bom ver TV

«A Raia dos Medos» tem, entenda-se, mais qualidades que as que se consubstanciam no tema escolhido e no modo como foi abordado. Vai a série no seu segundo episódio e seria prematuro tentar fazer delas um inventário fechado, mas é desde já possível notar a mobilização inabitual de meios e métodos que uma produção rodada ao ar livre e em espaços amplos exige. Quanto à excelência de quase todas as interpretações, não surpreende quanto a actores já experimentados, confirma o talento de quase todos os restantes e acentua um dado que nesta área permite algum reconforto: os actores portugueses trabalham cada vez melhor em televisão, o que naturalmente tem a ver com a continuidade do que já vai podendo ser designado por indústria de ficção televisiva, embora ainda cheia de limitações, dificuldades e forçados compassos de espera. A partir daqui, o mais importante será cuidar para que facilidades popularuchas e cupidez comercialona não inquinem a produção. Quanto a isto, tudo ou quase tudo depende das encomendas por parte das estações, e é aqui que de novo se evidencia a importância não apenas de um serviço público que pode ser liquidado por inanição, mas também de uma estação pública que com critérios adequados lhe assegure a continuidade.

Entretanto, temos «A Raia dos Medos», esperando que até ao seu final mereça a esperança despertada e o aplauso recebido. É bom vermos a verdade revelada depois de décadas de ocultação. É bom vermos que a televisão pode valer a pena. Creio que até se pode dizer que é bom ver um «serviço público» assim.


«Avante!» Nº 1369 - 24.Fevereiro.2000