O despertar dos pobres
Por Joaquim Miranda
Em Banguecoque, na Tailândia, decorreu na passada
semana a X Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o
Desenvolvimento (CNUCED), cujos trabalhos iniciais tive a
oportunidade de seguir.
Não conheço, no
momento em que escrevo estas linhas, o texto final adoptado,
nomeadamente o previsto Programa de Acção. Nem é de esperar
que ele reflicta mudanças sensíveis, em termos objectivos,
relativamente ao que hoje se passa, face às posições
intransigentes e iníquas vindas da parte das principais
potências mundiais.
De qualquer forma, os trabalhos preparatórios, particularmente
os documentos elaborados pelo Grupo dos 77 mais a China e pelos
seus sub-Grupos africano, asiático e latino-americano, mas
também a generalidade das intervenções efectuadas nos
primeiros dias da Conferência bastaram para dar o tom quanto às
preocupações dominantes no momento actual, especialmente no
tocante às «relações norte-sul».
E elas têm a ver com os efeitos brutais da globalização em
curso e em especial da orientação que lhe é conferida e
dos interesses que serve - nos países menos desenvolvidos do
planeta.
Aumenta a desigualdade
É uma evidência,
com efeito, que essa globalização apresenta resultados
profundamente desiguais, bastante vantajosos para os países
ricos que a determinam e comandam e profundamente
negativos para os de menos desenvolvimento.
Ao ponto de se constatar hoje que os chamados Países de Menor
Desenvolvimento passaram, em número e em menos de três
décadas, de 25 para 48 países, representando já cerca de 13 %
da população mundial, mas apenas 0,4 % das exportações e 0,6%
das importações globais, conforme afirmou o brasileiro Rubens
Ricupero, secretário geral da CNUCED, na abertura dos trabalhos
desta.
Situação essa a que não é indiferente ainda o decréscimo
sensível da ajuda concedida a esse países, com uma diminuição
de 23% só na última década; e ao que se podem somar os efeitos
desastrosos do peso da dívida; também os baixos preços das
matérias primas e, mais em geral, as desiguais relações de
troca; ou ainda a falta de acesso à informação e às novas
tecnologias; etc., etc..
Esta é hoje uma realidade tão evidente que não só todos a
conhecem como muitos já a reconhecem publicamente.
Mesmo aqueles que por ela são principais responsáveis.
Ao ponto de o ainda Director Geral do Fundo Monetário
Internacional instituição com tantas responsabilidades
na situação desastrosa que vivem muitos dos países mais
pobres, nomeadamente por força dos programas de ajustamento
estrutural a que os vem obrigando ter sido obrigado a
referir também na referida Conferência que «a comunidade
internacional dá com uma mão (a esses mesmos países mais
pobres) o que retira com a outra mão».
Globalização em causa
Não se trata de uma
novidade o que ali afirmou Michel Camdessus. Sabemo-lo de há
muito. Nem um tal reconhecimento serôdio significará uma
mudança qualitativa de atitude da parte da instituição que
representa ou das potências que a mesma indiscutivelmente serve.
O que porventura é novo é que ele e outros tenham sentido agora
a obrigação de o afirmar.
E é seguramente este o dado novo que a X CNUCED trouxe: a
globalização se não foi definitivamente posta em causa, foi ao
menos inequívoca e seriamente questionada, num evento
representativo de 182 países.
E este facto não aconteceu por acaso, nem de forma inesperada:
ele é um resultado inequívoco do fracasso da OMC em Seattle,
nos finais do ano passado. O qual, importa recordar, já se
seguiu a um outro fracasso anterior, o do AMI.
Ora aquele fracasso, ainda que indissociável de contradições
de interesses entre os grandes blocos económicos (EUA, Japão e
União Europeia) e também das movimentações sociais que a
acompanharam (porventura as primeiras a uma tal escala e logo
numa cidade norte-americana), não pode igualmente desligar-se da
sensível movimentação que já aí se fez sentir da parte dos
países de menor desenvolvimento, confrontados que estavam com
problemas acrescidos que resultariam duma aprovação de regras
no domínio comercial orientadas para dar continuidade ou mesmo
reforçar as anteriormente ratificadas em Marraqueche, e já de
si tão flagrantemente lesivas dos seus interesses e tão
contraditórias com o seu necessário desenvolvimento.
A falta de acordo naquela cidade norte-americana que em si
mesmo não deve suscitar excessivas ilusões e, em especial, não
pode levar a uma falta de atenção ao próprio desenrolar do
processo derivado de Marraqueche teve, porém e entre
outros, o profundo mérito de animar, de dar uma nova alma aos
países mais pobres do mundo.
E isso sentiu-se de forma marcante em Banguecoque.
E, fundamentalmente e a meu ver, coloca na ordem do dia a luta
por uma nova ordem económica mundial.