Não ao pessimismo
Por Miguel Urbano Rodrigues
Um vento de pessimismo fustiga a Europa.
A ideia de que a globalização capitalista de figurino imperial
chegou para se eternizar gera sentimentos de desânimo,
favorecendo atitudes capituladoras, em busca do mal menor.
Na esquerda muitos quadros esquecem que o mundo é muito mais
vasto do que a troika Europa-EUA-Japão e que vivemos num tempo e
espaço únicos.
Seattle foi uma advertência sobre os limites da estratégia
imperial.
Na América Latina, quase de repente, o fracasso das políticas
neoliberais faz estalar as fachadas da falsa democracia. O
descontentamento explode com violência .
Alguns exemplos expressivos:
1. No Uruguai foi necessário um acordo entre os dois grandes
partidos da burguesia, o Colorado e o blanco - historicamente
inimigos - para impedir a conquista da presidência pela Frente
Ampla.
2. Na Bolívia, no Peru, no Paraguai a tensão social cresce e as
massas urbanas e rurais manifestam de múltiplas maneiras a sua
rejeição das políticas de ajuste que aprofundaram o fosso
entre as minorias privilegiadas e a esmagadora maioria, que vive
abaixo do nível da pobreza.
3. No Brasil o Movimento dos Sem Terra, cada vez mais organizado,
emerge como a força de oposição mais poderosa. O Comando
Militar da Amazónia, reagindo aos projectos intervencionistas
dos EUA, treina em Manaus oficiais e soldados para lutarem, como
guerrilheiros, na selva, contra o «invasor potencial», os
Estados Unidos.
4. No Equador, a insurreição das comunidades indígenas assumiu
tal amplitude que um presidente corrupto, Jamil Mahuad, foi
forçado a renunciar. Um contra-golpe, concebido em Washington e
executado pela hierarquia militar, colocou no Poder um
presidente, Gustavo Noboa, tão submisso ao imperialismo como o
deposto, mas novas explosões sociais fermentam nos vales da
Cordilheira.
5. Na Venezuela, um presidente patriota, Hugo chavez, desenvolve,
com o apoio maciço do povo, uma política progressista de defesa
da soberania nacional. A declaração provocatória do
subsecretário de Assuntos Latino-americanos dos EUA, Romero,
segundo a qual o país está «desgovernado» e «os gringos são
conhecidos por não terem muita paciência» é reveladora da
atitude do imperialismo.
6. Na Colômbia, abrem-se a cada semana novas fissuras num
sistema de poder apodrecido e desacreditado. O Governo de Andres
Pastrana tem consciência da sua incapacidade para derrotar as
guerrilhas, sobretudo as FARC-EP, a mais antiga organização
guerrilheira da América Latina. As negociações de paz e a
desmilitarização de uma área vasta como a Bélgica coincidem
com a intensificação da guerra.
A constituição de uma força de elite dotada dos mais modernos
armamentos (dos EUA chegaram 1600 milhões de dólares), e a
entrega dos comandos principais do Exército a oficiais de
extrema direita não alteraram a situação. As FARC-EP
adquiriram uma aura de invencibilidade, o que reforça em
Washington a inquietação. A ideia da intervenção ganha
terreno na Casa Branca à medida que o sistema de poder
oligárquico apresenta indícios de desagregação .
A intervenção militar directa norte-americana somente não se
concretizou ainda porque o Brasil reagiu negativamente às
sugestões do general Mac Caffery, quando este visitou o país. A
recusa brasileira de colaborar em projectos de intervenção na
Colômbia não resultou obviamente de simpatia pelas FARC ou pelo
ELN. O distanciamento do governo de Fernando Henrique nasceu do
temor das consequências da transformação da Colômbia num
gigantesco Kosovo.
A intervenção norte-americana poderia ser a faúlha de um
incêndio que abrasaria a América Latina.
A recusa do pessimismo deve nascer da compreensão da própria
história. A política não deve ser vista como a arte do
possível, como pretende a burguesia. A correlação de
forças é, evidentemente, particularmente desfavorável hoje na
Europa. Mas ceder à realpolitik seria desistir de actuar sobre a
realidade, fazer, afinal, a política que os outros querem.
À realpolitik, a esquerda, para ser autêntica e
coerente, deve opor, como sugere Marta Harnecker, «uma política
que sem, deixar de ser realista, sem negar a realidade, vá
criando condições para a transformar».
O pessimismo, esse, leva ao oportunismo à capitulação, à
aceitação, mesmo não consciencializada, da política do
adversário.