Manuel Carvalho da Silva reafirma a importância da luta dos trabalhadores
Palavras descruzadas Por Domingos Mealha



Há grande contradição entre as declarações de princípios do Governo e a sua prática política, acusa o secretário-geral da CGTP-IN, na primeira entrevista concedida ao «Avante!» após o Congresso da central, em Dezembro, e a três semanas da manifestação nacional convocada para o primeiro dia da Cimeira Europeia.



«Avante!»
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— Como reagiram os partidos políticos, o Governo e outras entidades (que desde Dezembro a CGTP tem contactado) às decisões e ideias centrais saídas do 9.º Congresso?

Manuel Carvalho da Silva:

— Do ponto de vista formal, tem havido receptividade. Mas uma coisa é a identificação na base de princípios e orientações gerais, outra coisa será a aplicação concreta. Em geral, toda a gente acha que é importante valorizar o trabalho e dignificar os trabalhadores e reconhecem que a CGTP tem colocado este problema numa contextualização actualizada. No entanto, aqueles objectivos têm dimensões concretas, nas políticas de emprego, salariais, de protecção social, da Segurança Social, nos direitos dos trabalhadores, nas bases de estruturação de um vínculo laboral... As conversas que tivemos não foram a esses pormenores e não permitem tirar uma ilação que faça a prova da afirmação de princípio.

— Não foram assumidos compromissos ou expressos apoios a dada reclamação ou proposta?

Talvez a apresentação das conclusões do congresso não seja o melhor momento para isso se verificar, a não ser em relação a temas muito amplos.
Por exemplo, a redução do tempo de trabalho: houve, da parte do Partido Comunista Português, uma clara afirmação de identidade com esse objectivo e uma indicação de iniciativas que serão tomadas para dinamização dessa reivindicação, através da intervenção política que o Partido tem na sociedade e nas instâncias onde participa. Por parte do PCP, ouvimos identificação com a necessidade de articular as políticas sociais com a valorização do trabalho, na Segurança Social, na fiscalidade, Saúde; também ouvimos aceitação e apoio à nossa ideia de um crescimento real dos salários em 2000.
Quando falámos com a direcção do Partido Socialista, foi-nos expressa uma identificação genérica com as propostas gerais que a CGTP retirou do congresso. Mas não entrámos nos pormenores. Acham que a redução do tempo de trabalho é um objectivo, sim senhor, mas não há compromisso nenhum. Foi-nos também feita referência ao interesse de debatermos especificamente o tema da Segurança Social... Mas são coisas pontuais.
Com o PSD, a afirmação foi ainda mais genérica.
Em momentos concretos, como a discussão do OE, é contudo possível introduzir algumas matérias que encontrem sensibilidade num leque mais amplo de partidos.
Tivemos uma interessante reflexão com o patriarca de Lisboa quanto à necessidade de intervenções dentro das instituições para a valorização do trabalho e dos trabalhadores.
Verificamos que a generalidade das entidades a quem apresentámos as conclusões do congresso reconheceu que este constituiu uma afirmação da vitalidade do sindicalismo, da força da CGTP, da sua implantação e da sua perspectiva de futuro inequívoca, e também do tratamento qualitativo que foi feito de vários temas.

— Pouco depois do congresso, o ministro Ferro Rodrigues reconheceu a grave dimensão da precariedade no País. Estas declarações reflectiram-se em algumas medidas ou políticas que vos tenham sido referidas?

É positivo que o ministro tenha dito que é preciso tratar da questão da qualidade do emprego. Mas o debate sobre este tema está pouco mais do que no ponto zero. Não há um empenho efectivo da parte do Governo no seu tratamento sério.
Algumas linhas inscritas no programa para a Presidência portuguesa são positivas, não são liberais, e isso é importante para o movimento sindical português e para o movimento sindical europeu. Por exemplo, a afirmação de que é preciso contrariar a saída precoce do mercado de trabalho e criar empregos para os trabalhadores mais velhos; as referências à importância de reflectir sobre o emprego quando são definidas as grandes linhas da macroeconomia; a afirmação de que o emprego social deve ser valorizado...
Isto foi escrito, mas esta não é a prática. Só os ministros Pina Moura e Jorge Coelho, em intervenções que fizeram nos últimos doze meses, têm metros e metros quadrados de propostas e afirmações que vão numa linha prática exactamente oposta ao que está inscrito naqueles documentos no que concerne às questões que referi. Defendem sempre que a macroeconomia é sagrada e, portanto, tudo se submete aos ditames macro-económicos, em cuja definição não há que ter em conta o emprego. Posições no sentido de empurrar trabalhadores precocemente para fora do mercado de trabalho são mais que muitas, quer em relação à Administração Pública, quer em relação ao sector privado. São imensas as afirmações deles de desvalorização do espaço de emprego da área social.
O movimento sindical europeu quer fazer alguma valorização do texto que o Governo português apresentou, nestas vertentes e em mais algumas. Mas nós, como portugueses e como trabalhadores, temos que pôr em evidência a contradição entre aquilo que escreveram e a política que realizam. E, neste aspecto, os indicadores dos últimos dias são piores.

— O que te leva a essa apreciação?

Bem pode Ferro Rodrigues declarar a sua preocupação com a qualidade do emprego! Não há qualidade do emprego com baixos salários – e o Governo desencadeou uma autêntica campanha, anunciando moderação salarial para os próximos tempos, em sintonia com o sector privado. Sabemos que moderação significa manter salários muitíssimos baixos no nosso país. Mas apareceram notícias que o Governo não contrariou, o que só dá confirmação à existência dessa estratégia assente na moderação dos salários; veio depois um relatório do Banco de Portugal na mesma linha; aparecem os bancos a fazer o apelo à moderação salarial e vem a CIP dar uma conferência de imprensa para mostrar a importância da moderação salarial.
Isto mostra que o que está por trás da estratégia inerente ao Orçamento de Estado e às grandes medidas de macroeconomia são opções que não vão permitir qualquer evolução da qualidade do emprego.
Avaliando as características e o comportamento do primeiro-ministro e dos ministros que lhe estão mais próximos e são mais determinantes (salvo uma ou outra honrosa excepção), vemos que a grande marca comum é fazerem a política pela política, com uns salpicos de preocupação na área social, de carácter assistencialista.

— A necessidade de valorizar os salários encontra eco na sociedade?

Há uma interiorização crescente, na consciência e no sentir dos trabalhadores e das trabalhadoras, de que têm direito a viver melhor e de que é necessário lutar pelos salários, em situações de estabilidade de emprego, mas também em situações de precariedade.
É lamentável que o governo do Partido Socialista, em vez de ajudar, assumindo a valorização dos salários como um dos factores estratégicos para fazer evoluir qualitativamente o desenvolvimento do País, enverede pelo caminho oposto.
Nós vamos bater-nos até à exaustão pelo crescimento dos salários. E não julguem que nos cansam, somos corredores de fundo.

Mais do que uma grande manifestação

— A preparação da jornada nacional da CGTP, convocada para dia 23 de Março, está a evidenciar alguns resultados das decisões do congresso sobre organização sindical?

— Sim, sim. Estamos a dar cumprimento a desafios assumidos no congresso e que dependem só de nós, como trabalhadores organizados colectivamente. Um desses desafios foi aumentar a sindicalização, ao ritmo de 50 mil trabalhadores por ano, nos próximos 4 anos; e está a ser trabalhado, em articulação com a acção sindical concreta. Quando andamos na contratação colectiva e na preparação da jornada de dia 23, estamos também a trabalhar na definição e cumprimento de metas de sindicalização e rejuvenescimento.

Definimos o ano 2000 como ano de crescimento dos salários e combate à precariedade, e estamos com uma forte dinâmica reivindicativa, em vários sectores e regiões, e com boas respostas dos trabalhadores. As lutas na Administração Pública são claramente das mais participadas desde há muitos anos e, na greve de dia 18, por exemplo, entraram sectores que nunca tinham participado em greves com este âmbito. Julgo que isto vai trazer efeitos, porque há grande percepção, entre os trabalhadores, da autêntica vigarice que tem sido o processo negocial na Administração Pública.

Também há movimentações significativas noutros importantes sub-sectores e empresas.

Estamos a andar bastante bem na preparação de plataformas de intervenção em áreas como a fiscalidade, a saúde, a Segurança Social, a justiça do trabalho – articulando as reivindicações profissionais dentro de um sector e também articulá-las no conjunto dos problemas dos trabalhadores e incorporando os anseios que se expressam na sociedade portuguesa sobre os problemas específicos do trabalho, para termos êxito.

Estou perfeitamente convencido que vamos ter uma grande manifestação no dia 23, em Lisboa. Mas a jornada não é só a manifestação. Está a ser feito um grande trabalho de levantamento de situações, do qual resulta uma maior intervenção sindical, trazendo para apreciação da sociedade dados novos e gerando climas de resposta a problemas que estavam adormecidos.

 

A Presidência e o emprego

— O que podem esperar os trabalhadores portugueses destes seis meses em que a Presidência da União Europeia é portuguesa e em que a Comissão e os governos preparam uma cimeira extraordinária sobre o emprego?

— Os trabalhadores, para esperarem alguma coisa, têm que se movimentar.
É positivo que a Presidência portuguesa da UE tenha escolhido o emprego como tema de relevo, mas está a tratá-lo com um enfoque teórico extremamente futurista. Claro que as estratégias para o emprego têm que ter em conta as questões da informação, da comunicação, mas numa ligação com a realidade que se vive, e não numa abordagem desligada do que é hoje o processo de estruturação da economia, que gera tanto desemprego e tanta precariedade de emprego.
Não há, por outro lado, um debate interno sobre os problemas do emprego que temos e de acordo com o país que somos, na nossa realidade económica, onde o capital continua a minar e onde as doses de liberalismo continuam a entrar. É inadmissível que esta Presidência não seja acompanhada por uma estratégia que levasse a um debate profundo sobre factores extraordinariamente importantes que têm a ver com o emprego português: a qualidade do emprego, a produtividade, a qualificação e formação dos trabalhadores... Deveria ser uma discussão com profundidade, e não nestas encenações, em que umas quantas dezenas ou centenas de pessoas andam a saltitar de reunião em reunião.
Alguma coisa que possa ficar de positivo vai depender, quase em absoluto – e não estou a exagerar –, daquilo que nós, movimento sindical, formos capazes de fazer no que concerne ao levantamento da realidade, chamando a atenção para as contradições entre o que se afirma na teoria e aquilo que é prática política, trazendo à praça pública casos exemplares que possam ajudar a eliminar situações limite de destruição de emprego, de desregulamentação e de precariedade.


«Avante!» Nº 1370 - 2.Março.2000