ARGUMENTOS

Crónicas da Idade Mídia
A prescrição

Por Ruben de Carvalho


É inteiramente possível que um conhecedor de Direito considere ridículo dedicar duas linhas que seja a semelhante assunto. Pode igualmente suceder que alguém convicto da culpabilidade de Leonor Beleza no caso das transfusões com sangue contaminado defenda que tudo quanto a ex-ministra de Cavaco Silva possa dizer apenas corresponde a escusas. Mas Leonor Beleza disse algumas coisas que convém ter em conta na breve entrevista feita pela SIC no dia da decisão do Tribunal Constitucional.

Conforme se sabe, o Tribunal Constitucional considerou o processo prescrito. Ao que isto poderia representar para ela de benefício respondeu Leonor Beleza que era exactamente isso: um «benefício», que não tinha procurado. Ou seja, reclamava o facto de que não pretendera uma situação de não-processo por prescrição, para tanto nada houvera feito, antes tinha querido a realização do julgamento onde entende que provaria a sua inocência.

É evidente que o «processo dos hemofílicos» foi dos casos mais mediáticos dos últimos anos, e exactamente por isso merece ter em conta quanto com ele se relacione.

O que Leonor Beleza disse à SIC poderá resumir-se ao seguinte:

(i) O Ministério Público formulou a acusação relativa ao caso oito anos após a ocorrência dos factos, o que, em qualquer circunstância, se pode considerar um período estranhamento prolongado;

(ii) Sucede que o prazo de prescrição legal é de dez anos. Iniciativas da defesa – inteiramente legítimas do ponto de vista jurídico – no sentido de fazerem prescrever a acusação ficam assim com a vida inteiramente facilitada: tem apenas que arrastar questões processuais durante dois anos para que o caso seja arquivado;

(iii) Sucede que, como qualquer jurista esclarece, as elementares e rotineiras operações processuais tendem, no quadro do actual funcionamento dos tribunais, a arrastarem-se por prazos superiores a dois anos;

(iv) Daqui, concluir que qualquer magistrado do Ministério Público tem obrigação de saber que formular uma acusação oito anos depois do eventual cometimento do crime e dois anos antes da sua prescrição acaba a ter largas probabilidades de constituir um contributo para acumular mais um processo prescrito, na prática injustiçado.

Poder-se-á dizer que um magistrado do Ministério Público, demore lá o que demorarem as investigações, tem o dever de formular a sua acusação e deixar o processo seguir os trâmites que, a seu ver, o crime requer. Mas é aqui que Leonor Beleza veio recordar um aspecto que frequentemente se esquece: é que um julgamento é um juízo feito entre duas parte. Se uma ganha, a outra perde; se assim não é em absoluto, há uma divisão de responsabilidades.

O instituto da prescrição de um crime releva da realidade da vida. O tempo passa, os padrões sociais modificam-se, as situações igualmente, as pessoas também. O Direito contempla essa realidade. É certo que a faz viver lado a lado com princípios mais absolutos, mas, de certa forma, deixa ao juízo social a avaliação das alterações determinadas pelo decorrer do tempo e que a norma intemporal tem dificuldade em considerar. Dez anos depois o criminoso pode ser outra pessoa completamente diferente; a lei admite-o, a sociedade que julgue.

Sucede contudo que a prescrição toca igualmente a defesa e a acusação. Ou seja, prescrito um processo, o réu não teve de provar a sua inocência - mas a acusação não teve igualmente de provar a sua legitimidade. Mas sobre o réu ficará a impender o labéu de o ter sido, enquanto sobre a acusação quedará a diáfana auréola de, pura e simplesmente, ter cumprido o seu dever.

O que Leonor Beleza veio dizer com maior ou menor clareza é que fazer acusações com prazos que desde logo fazem prever a prescrição ou, pior ainda, quando é a própria acusação pública a recorrer a dilações processuais que para tanto contribuem, se coloca nas mãos do acusador uma arma política e social terrível: formular uma acusação, apontar alguém como réu e evitar que tal acusação se confirme na barra do tribunal, deixando o acusado amarrado para sempre face à opinião pública a uma incriminação que ficou sem prova e sem julgamento.

Não parece hoje possível ter dúvidas sobre a protagonização política assumida pela justiça, tanto quanto se reconhece a crise que a afecta no seu relacionamento com o comum dos cidadãos. O número de processos prescritos tem vindo a constituir um dos eixos do problema. Valerá a pena aprofundar sobre se o que surge como imprevisto resultado de uma situação indesejada não pode também constituir o recurso a artifícios inaceitáveis.

A catadupa de prescrições a que se vem assistindo não introduz apenas a desconfiança na justiça porque muitos crimes ficam impunes; também introduz a desconfiança na justiça porque legitima a dúvida sobre as acusações.


«Avante!» Nº 1370 - 2.Março.2000