As ideias e as palavras

No romance «1984», escrito nos anos 40, Orwell imagina uma espécie de código político-mediático - que designa por «novilíngua» - que, ao serviço do poder totalitário do Big Brother, manipula as massas através de uma estudada e sistemática utilização do eufemismo e da antífrase. A «novilíngua» orwelliana, devidamente adaptada, preenche hoje parte considerável do tempo e do espaço da comunicação social dominante e assume expressão marcante no ataque aos partidos comunistas. Gorbatchov e os que, com ele, conduziram o processo que viria a constituir a causa próxima da liquidação da URSS e do PCUS deram um contributo assinalável nesse sentido. Aliás, a maquinação político-linguística produzida por esse grupo liquidacionista tem sido, nos últimos quinze anos, um instrumento utilizado para desorientar e desarmar ideologicamente significativos segmentos do movimento comunista e tem sido suporte de degenerescências, desvios, compromissos e capitulações suicidárias.

«Modernos», «progressistas», «democratas», «renovadores», «inovadores», «revolucionários» - assim eram designados por Gorbatchov e pelos seus homens de mão todos os que na ex-URSS actuavam visando a liquidação do socialismo e o regresso ao capitalismo. «Conservadores», «dogmáticos», «ortodoxos», «dinosauros», «direitistas», «antidemocratas» eram, para os protagonistas do «novo pensamento político», todos os que, procurando combater a estagnação e as práticas de afrontamento do ideal comunista, defendiam o socialismo e a retoma dos caminhos abertos pela revolução de Outubro – a mais radical, a mais progressista, a mais inovadora, a mais moderna revolução da história da humanidade. Quando aceitou com um sorriso a dissolução da URSS (meses depois de 75% dos soviéticos, em referendo, terem decidido o contrário); e quando, com o mesmo sorriso, aceitou a suspensão do partido de que era secretário geral e a repressão sobre milhares de comunistas – Gorbatchov descodificou a «novilíngua», ganhou definitivamente o estatuto de «democrata», foi capa da Time e herói do imperialismo.

Essa inversão do sentido das palavras e dos conceitos constituiu e continua a constituir uma forma perigosa de, através do falseamento dos dados, iludir pessoas e espalhar o confusionismo. A verdade é que, como se sabe desde Hegel, quando se mudam as palavras já se mudaram as ideias – por mais disfarces e artimanhas que se utilizem. Pelo que a ninguém surpreende a confissão pública do próprio Gorbatchov de que foi invocando e enaltecendo Lénine e o leninismo que destruiu e liquidou o partido de Lénine. E é igualmente evidente que a tarefa que hoje se coloca aos comunistas não é a de defender Lénine mas a de se defenderem com Lénine. — José Casanova


«Avante!» Nº 1370 - 2.Março.2000