As raízes


Nas escolas portuguesas há violência de diversos tipos: agressões, roubos, vandalismo, porte de armas brancas e ameaças a condizer, venda de droga, desrespeito de vários escalões a professores e pessoal administrativo, intimidação sobre os alunos mais novos e mais fracos. Disso se falou no «Esta Semana». E, a dado passo, com aparente candura, Margarida Marante perguntou por que é que tudo isso ocorria nas escolas públicas e não nas escolas privadas. Tenho como certo que por detrás da ingenuidade estava a fé que Margarida tem, como muitos outros mas nela mais visível do que é costume, nas virtudes sobrenaturais da iniciativa privada. Hoje, neste nosso país, a cega fé nos méritos miraculosos das diferentes formas de exploração privada ameaça seriamente, no invisível «ranking» das crenças, a hegemonia de Fátima.

Contudo, não é preciso estar muito informado nem ter um q.i. acima da média para se perceber que na população escolar do ensino privado não entra a garotada que vive ou sobrevive nos bairros degradados, os filhos sem pais ou a quem mais valera não os ter, os miúdos em crónico mau passadio alimentar e sem casa a que com propriedade se possa chamar habitação. Que, enfim, as crianças das escolas privadas, que muito provavelmente tiveram o ainda privilégio do ensino pré-escolar, são criaturas de outro pano, de pano mais fino. E também que as escolas privadas têm em regra instalações de dimensão menor e melhor defendidas contra intrusos que saltam uma cerca vulnerável para irem roubar ou para vender droga. Que são diferentes, mas custa dinheiro ter lá os filhos. Como Margarida Marante saberá até por experiência própria, embora, no seu caso, de peso eventualmente irrelevante para a largueza do orçamento doméstico.

O secretário de Estado da Administração Educativa, Augusto Santos Silva, também presente, não aludiu às diferenças entre os segmentos sociais que fornecem alunos para um e outro sector, mas é preciso registar que teve o mérito, talvez mínimo, de identificar as raízes do mal: a inexistência de estruturas familiares adequadas, as carências habitacionais e outras, a exclusão social, aquilo enfim que se resume numa palavra caída em desuso talvez por demasiado incómodo: miséria. Mas, implícita ou explicitamente, esse conjunto sinistro de causas também pode ser designado de outro modo: trata-se de facto de situações presentes, em maior ou menor grau, em todas as variantes conhecidas do tipo de sociedade a que o nosso país também aportou e em que, no convencimento de muitos, definitivamente ancorou.

A secreção inevitável

Os outros convidados presentes também intervieram. Aconteceu até que o muito jovem Gustavo Lima, aluno da Escola Secundária Aquilino Ribeiro, foi tão surpreendentemente brilhante pela facilidade de expressão, pelo equilíbrio, eu diria até que pela inesperada maturidade, que foi de todos o mais notável e veio dar um contributo não irrelevante para a minha esperança no futuro que será o dele, não já o meu. De qualquer modo, nenhum deles tentou sequer encaminhar a conversa para aquilo a que bem pode chamar-se o nó do problema, isto é, a necessidade de arrancar ou secar as raízes da situação.

Ou, dizendo-o, de um modo mais simples e sintético: mudar a sociedade.

De caminho, e já que se tratava de uma conversa na TV, também alguém podia ter lembrado a contribuição da televisão, impositora de modelos de comportamento não apenas durante o breve tempo dos «spots» publicitários, para muitas das formas de violência que irrompe nas escolas. Mas ninguém o fez, e é claro que Margarida Marante não é pessoa para lembrar a questão. Também nesse caso, porém, não se sairia da mesma explicação global. A televisão que todos os dias nos entra em casa, nas casas dos alunos que são a população discente das escolas, e mostra a agressividade como um natural método de eficácia e triunfo, lisonjeia o individualismo mais extremo e de todo ignora o civismo, semeia a avidez do máximo consumo como forma de realização pessoal, não é assim por acaso: é a secreção inevitável da sociedade que temos. E os que sentem a apetência de uma outra TV radicalmente diferente precisam de, por coerência e com coragem, encarar a necessidade de mudar o mundo. — Correia da Fonseca


«Avante!» Nº 1370 - 2.Março.2000