Um melancólico e imenso vazio


 
A «instabilidade do PCP»
tem constituído tema preferencial
para gerações sucessivas de analistas

Segundo dirigentes do PS, comentadores e analistas políticos e afins, o PS e o Governo do engenheiro Guterres vivem uma situação angustiante e dramática. Não por efeito das lutas internas que envolvem um significativo número de dirigentes do partido e que destapam desmedidas ambições de poder a curto, médio e longo prazo; nem por efeito de o Governo, continuando abusivamente a falar em nome da esquerda, prosseguir fielmente a sua política de direita: a situação dramática decorre, segundo os peritos, do facto de não haver quem «faça oposição». Dizem uns que tal situação tende a empurrar o Governo para a «asneira» - como se fosse necessário ser empurrado... Dizem outros que esta lamentada «ausência de oposição», evidenciando a inexistência de uma «alternativa credível», prejudica o «jogo democrático» e deixa o Governo com as mãos livres para fazer o que muito bem lhe apetecer – como se essa não fosse a prática do Governo desde há quase cinco anos. Dizem uns e outros, em coro e em síntese, que a dramática situação é resultante do «clima de instabilidade existente no PSD e no PCP», clima que também é responsável pelo «amorfismo» do PS e pelo «adormecimento das estruturas do partido». (E tão profundo é esse «adormecimento» que a comissão permanente do PS decidiu que a próxima reunião do secretariado nacional vai ser dedicada à discussão de «formas de reactivar o partido, do nível nacional ao nível distrital/local».)

O conteúdo da análise produzida por tão luzida corte de dirigentes e pensadores políticos é bem revelador do tempo que vivemos e de como a actividade política é vista e considerada.

Para esses argutos observadores, a expressão «ausência de oposição» tem um significado muito especial. Trata-se de uma fórmula que, metendo no mesmo cómodo saco a oposição ao Governo e a oposição à política do Governo – e não distinguindo o conteúdo concreto das oposições praticadas, por exemplo, pelo PSD e pelo PCP – identifica sob a designação geral de «oposição» todos os partidos que não estão no Governo. E como o PSD – por eles, regra geral considerado como «o maior partido da oposição» ou, até, «o líder da oposição» - vive uma situação de guerra entre «oposições» internas, facilmente chegam à desejada conclusão da «ausência de oposição».

Trata-se, ao fim e ao cabo, de um conceito de oposição bem ajustado à manipulação reinante e ao objectivo de consolidar e institucionalizar a alternância e a bipolarização, pilares essenciais do sistema, sustentáculos e motores de uma política ao serviço dos interesses dos grandes grupos económicos. Trata-se de fazer passar como boa uma «oposição» que não ponha em causa a política de direita, que vá colorindo e enfeitando o chamado «jogo democrático», que finja ser o que não é para melhor ser o que é – e, especialmente, que transmita a imagem de uma «democracia que funciona» e, assim, dê força ao modelo de democracia dominante.

A «instabilidade do PCP» - sempre apresentada como dado adquirido e como manifestação de fase terminal – tem constituído tema preferencial para gerações sucessivas de comentadores e analistas. Não têm conta as vezes que, nos últimos 79 anos, na sequência de fundamentadas e brilhantes análises, o PCP foi dado como morto. E são conhecidas, igualmente, as múltiplas formas que a anunciada morte tem assumido – e, naturalmente, as receitas capazes de obviar ao sinistro desenlace. Na situação actual, e como acontece sempre que o PCP está em tempo de Congresso, as orações fúnebres aumentam de tom e as tradicionais ladaínhas multiplicam-se. Enquanto a comunicação social da especialidade vai divulgando as «notícias» que melhor servem esse objectivo obituário, emergem, do interior do PS, «vozes amigas», «conselhos democráticos», enfim «sinceros votos para que os sinais de mudança se aprofundem». Porque é na mudança que está a salvação: «Um PCP responsável, convictamente reconvertido aos valores mais significativos da democracia política (...) faz falta ao País. Faz falta à esquerda» - escrevia, há dias, um conhecido militante do PS; e acrescentava, deixando fugir a boca para a verdade: «Faz falta, a diversos títulos, ao próprio Partido Socialista.» Convenhamos que não se pode ser mais claro.

Tamanho é o esforço desenvolvido por todos esses ilustres pensadores na análise à «instabilidade», à «morte iminente» e à «mudança salvadora» do PCP que não lhes sobram forças para observar a actividade concreta dos comunistas. Assim, em vez de procurarem avaliar a dimensão e o conteúdo do debate preparatório do XVI Congresso, optam pelo recurso ao velho cozinhado de frases feitas sobre o funcionamento interno do PCP; em vez de se pronunciarem sobre o que é, de facto, esse funcionamento interno preferem referir-se-lhe recorrendo a mastigadas conclusões que lhes permitam escapulir-se à constatação do superior conteúdo democrático da vida interna do PCP; em vez de se pronunciarem sobre o papel do PCP no combate à política de direita e pela construção de uma alternativa política de esquerda – combate que evidencia uma postura única no quadro partidário nacional – preferem discorrer sobre as angústias decorrentes da «ausência de oposição»... Não querendo ver a oposição que existe, que age, que propõe, que luta, que outra coisa poderão ver que não seja um melancólico e imenso vazio?


«Avante!» Nº 1371 - 9.Março.2000