Os Estados
Unidos vigiam as comunicações de todo o mundo para fins de
espionagem económica e controlo político
Echelon,
o espião global
Por Carlos Nabais
O sistema de espionagem electrónica criado pelos
Estados Unidos e pela Grã-Bretanha não é uma simples suspeita
ou o produto de alguma imaginação prodigiosa. O Echelon existe
mesmo e tem capacidade para recolher e filtrar praticamente toda
a informação que circula no mundo.
O Echelon terá sido concebido para fins militares no âmbito da
confrontação Leste-Oeste, mas hoje, embora alguns o queiram
apresentar como um instrumento importante do combate à
criminalidade e ao terrorismo, os seus objectivos são bem
diferentes. As mais recentes revelações confirmam anteriores
suspeitas de que este sistema de intercepção de
telecomunicações tem como principal objectivo servir os
interesses económicos das empresas norte-americanas e políticos
do governo dos EUA. Pelo meio, há histórias de corrupção de
empresas fabricantes de aparelhos de cifra e de computadores, com
a Microsoft e a Lotus a serem acusadas de colaborarem com a
espionagem de dados.
Acusada é ainda a Grã-Bretanha que, como o principal parceiro
dos Estados Unidos, tem instalado no seu território grande parte
do sistema que vigia a Europa. Dessa colaboração sem
escrúpulos os ingleses retiram vantagens evidentes sobre os seus
concorrentes da União Europeia. Afinal, nos tempos que correm, a
protecção das liberdades individuais e o exercício da livre
concorrência não passam de meros chavões para consumo das
opiniões públicas, constantemente desmentidos pela política
real dos estados imperialistas.
O «Big Brother» existe
As primeiras
revelações sobre espionagem electrónica foram feitas ainda nos
anos 70 por investigadores britânicos mas, no contexto da guerra
fria, o caso foi rapidamente abafado e os seus autores presos.
Entre eles estava precisamente o escocês Duncan Campbell que, em
1976, denuncia a existência de um centro britânico de
vigilância electrónica situado em Cheltenham. Tratava-se do
General Comunications Head Quarters (GCHQ), parceiro
inglês da Agência de Segurança Nacional (National Security
Agency NSA), o mais secreto e poderoso dos 13
serviços secretos dos Estados Unidos.
Contudo, o assunto só ganha notoriedade em 1998, na sequência
de um relatório elaborado pelo eurodeputado trabalhista Glynn
Ford para o Parlamento Europeu. O relatório dedicava apenas duas
páginas ao «Echelon» descrevendo-o como um programa de
espionagem anglo-americano cujo objectivo é interceptar qualquer
comunicação de fax, telefones fixos ou móveis, correio
electrónico, comunicações via satélite, em especial as
comunicações comerciais e políticas do conjunto dos países do
continente europeu.
Apesar de ter sido considerado insuficiente, o estudo teve o
mérito de ter feito sair o caso «Echelon» do círculo restrito
dos especialistas, despertando povos e países para a ameaça
real que representa, qual «Big Brother» imaginado por George
Orwell no livro «1984».
Mais provas
e detalhes
Mas se dúvidas havia em relação
à existência de um sistema de escutas à escala mundial
comandado pelos Estados Unidos, elas dissiparam-se com a
divulgação do mais recente relatório de Duncan Campbell, que
foi apresentado numa audição do Parlamento Europeu sobre a
Protecção de Dados, realizada em 22 de Fevereiro passado.
Como nunca antes, o autor traz a público os pormenores do
sistema de espionagem, recordando que foi criado para combater a
União Soviética e todo o bloco socialista, constituído na
sequência da derrota do nazi-fascismo.
É neste contexto que, em 1947, a Grã-Bretanha e os Estados
Unidos fazem um acordo secreto para prosseguirem a sua actividade
conjunta de vigilância das comunicações. Três outros países
anglo-saxónicos, a Austrália, Nova Zelândia e Canadá, aderem
a este acordo, designado por UKUSA, cuja existência, negada
durante anos a fio pelos respectivos governos, é hoje provada em
documentos da NSA entretanto desclassificados.
No âmbito desta aliança desenvolve-se o sistema Echelon que,
segundo se crê, funciona há mais de 20 anos. A sua necessidade
surgiu nos finais dos anos 60 quando a NSA e o GCHQ planearam as
estações de intercepção de satélites em Mowenstow,
Inglaterra, e em Yakima (EUA), que levariam a um aumento
exponencial da quantidade de mensagens interceptada,
impossibilitando o seu exame individual.
Começa então a ser concebida a primeira geração de
computadores Echelon com o objectivo de processar automaticamente
as informações recolhidas. Entre 1975 e 1995, o sistema foi
significativamente alargado, sobretudo a partir de meados dos
anos 80, com a implantação do Project P-415 que irá completar
a automatização da recolha, triagem e envio das informações.
Computadores
«dicionários»
Construído como uma rede global
de comunicações semelhante à Internet, capaz de ser comandado
à distância, o componente principal do Project P-415/Echelon
são os computadores «dicionários» que conseguem armazenar e
analisar enormes volumes de informação em busca de assuntos
específicos, incluindo nomes, tópicos de interesse, moradas,
números de telefone e outros critérios de selecção. Se alguns
destes é detectado, a mensagem é automaticamente enviada para o
centro da NSA nos Estados Unidos.
O funcionamento destes «dicionários» pode ser comparado ao dos
chamados «motores de busca» bem conhecidos dos utilizadores da
Internet, que seleccionam páginas electrónicas consoante a
palavra-chave introduzida.
Actualmente, segundo Campbell, este sofisticado dispositivo
utiliza uma rede de 120 satélites geoestacionários, bases
terrestres nos cinco países da aliança UKUSA com poderosas
antenas, aparelhos de escuta de cabos submarinos e vários pontos
de intercepção de todas as transmissões via Internet.
Assinale-se a propósito que, segundo o investigador, o incrível
fluxo de informação que a Net comporta não é superior às
capacidades de intercepção dos espiões anglófonos.
Em pelo menos nove pontos centrais de comunicações Internet,
(os chamados portais) a NSA colocou programas extremamente
evoluídos (N-gram analysis) capazes de fazer a triagem de
informação por tópicos e não como até aqui por
palavras-chave. Os resultados práticos são alucinantes.
Como explicou o anterior director da NSA, William Studeman, em
1992, «Em cada meia hora, um sistema de intercepção de
informações pode gravar um milhão de mensagens; depois da
triagem restam 6500 e destas apenas mil respondem aos critérios
de busca. No final dez mensagens são seleccionadas por analistas
que normalmente apenas comunicam uma delas. Estes são dados
estatísticos de rotina», afirma Studemen citado por Campbell.
Cifragem
viciada
Um dos maiores problemas na
intercepção de telecomunicações é a codificação de
mensagens. Para o resolver, os americanos têm usado vários
expedientes, como por exemplo a sabotagem de aparelhos de cifra.
O caso da Crypto AG mostra como a NSA conseguiu que aquela
empresa suíça, fornecedora de máquinas de encriptação a
militares e diplomatas de mais de 130 países, viciasse o
material de modo a que a mensagem pudesse ser interceptada e
lida.
O processo, relatado por Campbell, remonta a 1975 quando a NSA
concebe um novo aparelho para a Crypto AG que emite cada vez que
é usado a chave da cifra que foi usada. Contudo, de modo a
prevenir que seja captada por outras escutas, a chave é também
ela encriptada de forma a que apenas a NSA a possa ler.
Técnicas semelhantes foram usadas com a Microsoft, Netcscape e
Lotus. Estas companhias concordaram em reduzir os níveis de
segurança do software vendido a países estrangeiros. A Lotus
Notes incluía um sistema médio de segurança de e-mail com uma
chave encriptada de 64 bit. Pressionada pela NSA, que precisaria
de meses ou mesmo anos para quebrar o código, a empresa aceitou
instalar um dispositivo (chamado workfactor reduction field
- WRF) nas versões vendidas para
fora dos Estados Unidos. Este WRF transmite os primeiros 24 dos
64 bits do código usado em cada comunicação, numa cifra que
só a NSA tem acesso e que lhe permitem facilmente ter acesso a
qualquer mensagem encriptada.
O ILETS
Todavia, a tecnologia não pára
de evoluir. Os EUA sabem-no e por isso nos últimos anos
desencadearam uma ofensiva diplomática para convencerem os
países da União Europeia da necessidade de equiparem todos os
sistemas informáticos com «chaves de cobertura» permitindo a
intercepção «legal» das mensagens codificadas.
Pela primeira vez o Relatório Campbell refere a existência de
uma organização até aqui desconhecida ILETS - International
Law Enforcement Telecomunications Seminar, (que pode ser
traduzido como seminário internacional sobre telecomunicações
para o combate à criminalidade). Criado pelo FBI, este
seminário reuniu pelo menos quatro vezes entre 1993 e 1997. Em
duas reuniões (Bona, na Alemanha, em 1994, e Dublin, Irlanda, em
1997), Portugal esteve entre os países participantes.
À revelia dos parlamentos nacionais, este fórum tem como
objectivo, segundo Campbell, concretizar os controversos planos
de exigir que os fabricantes e operadores dos novos sistemas de
comunicações incluam nestes a possibilidade de serem usados
pelos serviços nacionais de segurança ou pelas chamadas Law
Enforcement Agencies.
A este propósito, convém recordar que já em 1998, o PCP requereu
uma audição parlamentar para que, entre outros, o Governo
falasse do teor de um memorando sobre vigilância de
telecomunicações (Memorandum of understanding), assinado
em 1995, mas que ainda hoje se mantém secreto.
Os novos dados agora divulgados que implicam Portugal na
reuniões do ILETS voltam a colocar esta questão na ordem do dia
é urgente que o Governo se pronuncie sobre a matéria e
revele que tipo de compromissos foram ou estão a ser assumidos
nesta teia gigantesca chamada Echelon.
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Os
négocios
estão primeiro
Duncan Campbell não tem dúvidas de que este sistema tem sido usado pelos Estados Unidos para espionagem económica e comercial e com fins políticos. Como exemplos, cita os casos da Airbus que em 1995 perdeu um contrato de seis mil milhões de dólares (cerca de 1200 milhões de contos). Já em 1994, a Thomson CSF perdeu para a norte-americana Raytheon Corporation um contrato com o Brasil para a instalação de um sistema de vigilância da floresta amazónica. Em jogo estavam 1300 milhões de dólares (260 milhões de contos).
Há notícia de muitos outros casos em que as empresas americanas obtêm vantagens da espionagem electrónica, mas basta recordar que, em 1977, NSA, CIA e Departamento do Comércio criaram uma estrutura secreta, designada Office of Inteligence Liaison, que se transformou em 1993 no Office of Executive Support. A sua missão é transmitir a partir da NSA para o Departamento do Comércio todas as informações comerciais passíveis de interessar as empresas americanas com actividade no estrangeiro.
Na Grã-Bretanha as associações representativas de empresas podem interrogar os serviços de informação, os quais recolhem rotineiramente os planos de empresas, telexes, faxes e transcrevem chamadas telefónicas.
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O poder da NSA
A Agência Nacional
de Segurança (National Security Agency NSA) é uma
organização americana de informações que emprega pelo menos
cem mil pessoas em todo o mundo. Muito mais poderosa que a
famigerada CIA, possui recursos que representam um terço de todo
o orçamento americano de espionagem.
Através do Echelon, sistema concebido e coordenado pela NSA, 95
por cento das comunicações mundiais passam pelos seus
computadores. Os meios empregues são gigantescos, já que três
horas de dados analisados equivalem a toda a informação contida
na biblioteca do Congresso, considerada a maior do mundo.
A fundamentação ideológica de todo este poder é feita na
página da Internet pelo próprio director da organização,
general Kenneth A. Minihan. Numa atitude imperial declara que «o
controlo das tecnologias da informação será a chave do poder
no século XXI», tal como «o controlo da tecnologia industrial
foi a chave do poder militar e económico nos últimos dois
séculos».
O general considera que «a era do pós-guerra fria se
caracteriza pela dispersão do poder, instabilidade geopolítica,
e evolução tecnológica» sublinhando que «a revolução da
informação que varre o mundo está a provocar uma
transformação tão radical como a que resultou da invenção da
bomba atómica». Por isso, conclui que a sua nação passa por
«um ponto crítico de viragem na história», «não distinto
daquele que imediatamente se seguiu à 2.ª Guerra Mundial». E
explica que os «enormes desafios e oportunidades», que a
«idade da informação» apresenta, obrigam a rever a abordagem
tradicional dos serviços de informação e dos sistemas de
segurança de forma a atingir o objectivo de conseguir a
«superioridade informativa para a América».
E mais adiante este conceito de «superioridade informativa» é
definido como «a capacidade de recolher, processar e disseminar
um fluxo ininterrupto de informação enquanto se investiga ou se
impede que o adversário possa fazer o mesmo».