O calibre da
mentira
5.56
mm. NATO
O tempo escoa-se das mãos sem tempo dos homens. Anima a sua história, contradi-la, confunde-a ou liberta-a.
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O texto que se segue é uma carta do subcomandante Marcos, do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ao poeta e jornalista argentino Juan Gelman que há anos procura o neto(a) desaparecido durante a ditadura na Argentina. Reflexão sobre a hipocrisia da sociedade dominada pelo imperialismo norte-americano, a carta de Marcos é simultaneamente um grito de combate pela justiça e pela liberdade. (*)
Há dias que esta
carta me anda fazendo cócegas nas mãos. Um ou outro vento a
levou, mas não a levou para muito longe. Hoje parece que
finalmente se deixa escrever, e assim, tal como a sua empenhada
luta, com raiva e digno empenhamento, começam a sair as letras,
as palavras, os sentimentos. Talvez se lembre de mim: o senhor
entrevistou-me naquela altura do Encontro Intercontinental e
fez-me falar de poesia e de outras anacronias. A si conheci-o
através dos seus poemas, num desses livros que carregávamos nos
primeiros anos solidários da guerrilha que depois o mundo viria
a conhecer como Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Sei bem que o título pode soar estranho para muitos, mas não
para si, habituado como foi e está ao longo das suas andanças a
construir essas recordações e memórias a que alguns chamam notícias.
Seja como for, parece excêntrico intitular uma carta com a
medida de uma bala: «5.56 mm. NATO». Permita-me por isso
alongar-me um pouco sobre o tema, afinal de contas não sou mais
do que um soldado, um soldado muito diferente, mas um
soldado ao fim e ao cabo.
«5.56 mm. NATO» é a designação militar para referir a bala
usada, entre outras, pela espingarda M-16 (e as suas variantes
A-1 e A-2) e pela AR-15 - ambas de fabrico norte-americano -, da
Galil israelita, da Steyr Aug austríaca e de outras armas. A
referência comercial é «calibre .223». Sim, é a mesma
bala, mas uma é de uso militar, muito vulgar nos exércitos da
América Latina, e a outra é para caça.
A história desta bala é a história de uma mentira. Quando as
grandes potências militares incorreram no despropósito de humanizar
a guerra (primeiro nas convenções de Haia, depois na de
Genebra), acordou-se na proibição das balas expansivas ou dum-dum.
A argumentação foi impecável: o objectivo numa guerra
é causar baixas ao inimigo, e por baixas entende-se mortos,
feridos, desaparecidos e prisioneiros.
Ergo, para humanizara guerra o que há que fazer é
reduzir o número de mortos aumentando o número de feridos. Por
isso se pronunciaram pelo uso de «balas duras», que apenas
perfuram a carne humana mas, se não atingirem nenhum órgão
vital, não provocam a morte, e se a provocam não causam
«excessiva dor». Daí que se tenham proibido as balas
expansivas que, ao perfurar o corpo se abrem ou se
fragmentam, quer dizer, «se expandem», e o estrago que provocam
é maior do que o das balas simples, pois não só afectam no
local onde penetram, mas também numa área maior.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, nas sua
sigla em inglês), encabeçada pelos Estados Unidos, adoptou a
bala de calibre 7.62 mm., que foi conhecida desde então como
«7.62 NATO». O Pacto de Varsóvia, encabeçado pela então
URSS, adoptou o mesmo calibre, 7.62 mm., mas com um cartucho mais
curto do que o da 7.66 NATO (51 mm. o da NATO e 39 mm. o
soviético). A arma básica de infantaria usada pelo Pacto de
Varsóvia foi a espingarda automática Kalashnikov (AK) cujo
último modelo, o AK-47, prolifera no mercado negro. Por
seu lado, a NATO (e os países periféricos) adoptou diversas
armas para o calibre 7.62 mm x 55 mm. ou 7.62 NATO. Entre elas
esteve a Espingarda Automática Ligeira (EAL), de fabrico belga,
e mais recentemente a G-3, de patente alemã. O Exército
mexicano substituiu a EAL pela G-3 e chegou a fabricá-la depois
de adquirir os direitos.
Cenários de guerra
No auge da Terceira
Guerra Mundial (como lhe chamamos nós, os zapatistas) ou guerra
fria (como é conhecida na história actual), os
norte-americanos procuraram uma forma de tornar mais letais as
suas armas, ao mesmo tempo que ludibriavam os tratados que eles
próprios assinaram. Foi assim que nasceu, entre os anos
1957-1959 e a pedido do Comando da Armada Continental
(EUA), a bala de calibre 5.56 mm. (regularizada em 1964). Mais
delgada do que a 7.62 e muito mais rápida, a 5.56 mm. não só
apresentava vantagens no seu transporte (um soldado de infantaria
podia levar o dobro de 5.56 mm. em relação às 7.62, mas com o
mesmo peso e num espaço menor), como também representava
grandes lucros para as empresas bélicas norte-americanas (tão inocentes
como a General Motors, a General Electric, a Ford, etc.), porque
a sua aprovação implicava a renovação total do armamento da
infantaria dos Estados Unidos (formado então pelas carabinas M-1
e M-2, o velho Garand e a Thompson), ou seja, mais vendas.
Uma nova bala significava uma nova arma, e toda a indústria
militar se empenhou em demonstrar as bondades do novo
calibre. Para convencer o Pentágono apresentaram a melhor característica
da bala calibre 5.56 mm.: era de ponta mole. Que quer
dizer isto? Bom, significa que uma bala do tipo da de 5.56mm.,
com ponta mole, se dobra ao entrar em contacto com a carne
e começa a girar de um lado para o outro dentro do corpo.
Resultado? Mais terrível do que a expansiva, pois se o orifício
de entrada da bala era, de facto, de 5.56 mm., o de saída (se
existia) era até 10 vezes maior. Se a bala não saía, destruía
ossos, músculos, órgãos. Em conclusão: sem usar balas
expansivas, o exército norte-americano começou a utilizar uma
bala mais letal, com mais capacidade de matar e que deixava com
menos possibilidades de sobrevivência o alvo humano que a
recebia (além de que aumentava consideravelmente o sofrimento do
ferido).
Estou a falar do auge da guerra fria. Nessa altura, os
Estados Unidos imaginavam o futuro cenário de guerra mundial em
terras europeias e com os exércitos do Pacto de Varsóvia como
inimigos. O futuro «teatro de operações» estava perfeitamente
situado na larga linha que separava a Europa Ocidental da Europa
Oriental: grandes cidades, amplas e rápidas vias de
comunicação, muitos espaços abertos, etc.. Neste quadro, a
lógica do Pacto de Varsóvia era simples: lançar vagas atrás
umas das outras de soldados de infantaria e blindados para vencer
a resistência inimiga. Por isso os exércitos dos dois pactos
(de Varsóvia e da NATO) mudaram as suas armas básicas de
infantaria para espingardas de assalto (grande volume de fogo a
curta distância, inferior a 500 metros). A Guerra da Coreia
havia demonstrado as limitações da M-14 (versão
semi-automática do Garand M-1). Foi assim que nasceram os
protótipos do que depois viria a chamar-se M-16, fabricada pela
Colt em Connecticut, Estados Unidos.
Porém tanto a nova bala como a espingarda de assalto
necessitavam de ser experimentadas «em condições reais». O
governo norte-americano decidiu por isso que o seu pátio das
traseiras incluía o sudeste asiático e interveio
militarmente no Vietname. Com as novas M-16 e a sua nova bala
calibre 5.56 mm., as tropas dos EUA invadiram o Vietname, e nos
combates verificaram que a M-16 e a bala 5.56mm. não eram tão
boas como se dizia. A bala é extremamente veloz e leve, pelo que
qualquer toque numa folha ou ramagem mudava radicalmente a sua
trajectória (e, como era de se esperar, na floresta asiática
abundavam as folhas e os ramagens); além disso, a espingarda era
muito afectada pela humidade, um deficiente mecanismo do gatilho
fazia-o encravar, com a consequente falha no disparo.
Não foi nada agradável para os soldados norte-americanos verem
chegar uma vaga de vietcongs (como chamavam aos guerrilheiros
vietnamitas), apontarem-lhes as suas M-16, dispararem e ouvirem
só «clic». O Pentágono não se importava grandemente que
alguns dos seus rapazes perdessem a vida e os combates nas selvas
vietnamitas. Afinal de contas, nem a arma nem a bala tinham como
cenário essa guerra, mas sim a futura em território europeu e
contra o Pacto de Varsóvia. À medida que avançou a guerra no
Vietname, a espingarda foi sendo modificada: reforçou-se a
câmara para resistir à corrosão da pólvora, instalou-se uma
patilha extra de segurança do gatilho e ajustou-se a mola
recuperadora para reduzir a cadência de tiro. Assim nasceram a
M-16 A-1 e a M-16 A-2. Com o calibre 5.56mm. e a espingarda M-16
como arma básica da sua infantaria, o exército dos Estados
Unidos estava pronto para a nova guerra mundial.
A arma favorita dos opressores
Paralelamente à
M-16, desenvolveu-se a AR-15 (versão semi-automática daquela),
que logo havia de ser exportada para os países da América
Latina, mais concretamente para os seus polícias e esquadrões
contra-revolucionários.
No México, a AR-15 é a arma predilecta das polícias de
Segurança Pública do Estado. Especialistas em assassinar
camponeses e indígenas, a polícia de Segurança Pública de
Chiapas experimentava alegremente, nos corpos morenas das suas
vítimas, os efeitos do calibre 5.56mm.. Quando descemos das
montanhas, a 1 de Janeiro de 1994, encontrámo-nos com muitas
AR-15 que os valentes polícias deixaram abandonadas na
sua aparatosa fuga; mas isso é outra história.
Quando o senhor Zedillo toma o poder no México, antes do
assassinato do seu predecessor (Luis Donaldo Colosio), e fracassa
a sua ofensiva militar de Fevereiro de 1995, ele e o Exército
federal decidem activar grupos paramilitares para combater
o EZLN «sem o desgaste na opinião pública pela actuação
directa de tropas federais» (Memorando interno da Presidência
à Sedena, documento classificado, Março-Abril, 1995). Os pormenores
foram tratados pelo especialista em contra-revolução
general Mario Renán Castillo, sob a supervisão do seu superior,
general Enrique Cervantes Aguirre, pelo então governador
de Chiapas (e hoje adido da embaixada do México em Washington),
Ruiz Ferro, e pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI). O
acordo foi assim: o Exército dava a instrução e a direcção
estratégica e táctica, o PRI dava a tropa e o governo
dava o armamento e o equipamento. Desta forma, com prontidão, os
novos grupos paramilitares em Chiapas foram providos com
espingardas de assalto AR-15 e AK-47 (conseguidas no mercado
negro patrocinado pelos militares).
Acteal é a palavra que define cabalmente a estratégia
governamental em Chiapas. As balas que destroçaram os 45 homens,
mulheres e crianças nessa comunidade, em 22 de Dezembro de 1997,
eram, na sua maioria, de calibre 5.56mm., algumas 7.62mm. e uma
ou outra de .22. As três crianças que, há uns meses, foram aos
Estados Unidos para ser tratadas por cirurgiões especialistas,
apresentavam os efeitos do calibre da mentira: a 5.56mm..
No dia de hoje, 5 de janeiro de 2000, 30 indígenas zapatistas do
município de Chenalhó, Chiapas, sofreram uma emboscada de
polícias de Segurança Pública de de priístas. Foram atacados
quando saíam para cortar o seu café. Depois de horas de
tortura, o governo libertou 27 deles e manteve os restantes três
prisioneiros, acusados, diz, de provocar a matança de Acteal. O
ridículo governamental não se detém perante o facto de que é
do conhecimento de todos que foi Zedillo quem provocou a matança
de 27 de Dezembro de 1997, nem tão pouco perante o despropósito
de querer responsabilizar os zapatistas, que não são mais do
que as vítimas dos paramilitares. Não, vai mais longe porque a
prisão dá-se no contexto de uma suposta iniciativa de paz do
governo federal que oferece, entre outras coisas, a libertação
dos zapatistas presos. E não só não os liberta como aumenta o
seu número com os pretextos mais ridículos. Uma mentira faz com
hoje se somem mais três indígenas às centenas de zapatistas
presos pelo simples e imperdoável facto de serem isso:
zapatistas.
O efeito 5.56 mm.
Sei que, nesta
altura da carta, se interroga por que o tenho a si como
destinatário. Bom, acontece que há alguns meses li na revista Proceso
que o senhor derrubou um general argentino, coisa pouco
frequente, e que o fez com palavras (algo inaudito). A causa do
seu empenho foi então ofuscada pelo escândalo do affaire
Clinton-Lewinski (não sei se se diz assim, a literatura porno
não é a minha especialidade). Mas agora, mais recentemente, é
mundialmente reconhecida a sua campanha para encontrar o seu
neto(a). Sabe-se agora em todo o mundo que o seu filho e a sua
nora foram assassinados pela ditadura militar argentina (talvez
com uma bala calibre 5.56mm.), e que o filho(a) de ambos foi
vendido no mercado negro dos soldados de infantaria o que,
para além da tortura, parece ser a especialidade dos exércitos
latino-americanos. E isso da compra e venda de filhos de
desaparecidos políticos vem a ter o mesmo efeito do 5.56 mm.:
não só penetra ferindo, mas também gira dentro do corpo e
causa mais e mais estragos. Como se o desaparecido deixasse de
herança aos seus filhos a mesma condição. Quer dizer, um crime
que sofre a vítima... e os seus descendentes.
Vi a sua carta ao governo do Uruguai e li a sua resposta à
resposta desse governo (no La Jornada). Li e entendi por
que havia caído esse general argentino. Tenho a certeza de que
nunca imaginou que um dia iria enfrentar um poeta e, o que é
pior, a um poeta imprudente. Porque é isso que o senhor é, um
poeta (ainda que às vezes se disfarce de jornalista), e é
imprudente porque agora, nestes tempos, assim se chama aos que
não se rendem nem se conformam.
Finalmente, queria dizer-lhe que nós, os zapatistas, o apoiamos,
desejamos que o ou a encontre, que o seu neto ou neta (que já
deve ser um homem ou uma mulher feito/a) merece saber que teve os
pais que teve e a sua história. E, sobretudo, merece saber que
tem um avô que sempre o ou a procurou, que nunca se rendeu, que
fez cair um general com palavras e que comoveu o mundo com a sua
causa, e que o chá já não é tão amargo se tomado com alguém
que amamos, e outras coisas que, certamente, o senhor quererá
que ela ou ele saiba.
E tudo isto do calibre 5.56mm., de Acteal, dos paramilitares, da
sua luta têm a maior actualidade porque, agora que se discute se
o segundo milénio já terminou em 1999 ou se termina no final de
2000, há algo que é preciso dizer.
E nós, os zapatistas, dizemos que não, que nem o milénio nem o
século terminaram. Não terminarão até que haja justiça e
vida e liberdade. Não terminarão até que a justiça se cumpra,
se castiguem os verdadeiros culpados e seja assim impossível
outro Acteal. Não terminarão até que o senhor encontre o seu
neto ou neta. Não, nem o século nem o milénio podem dar-se por
terminados com estes casos pendentes. É uma vergonha para a
humanidade dizer que já entrou um novo milénio enquanto Acteal
continua pendente na memória, e um poeta-avô procura o seu neto
desaparecido. Não terminará nada enquanto os calibres das
mentiras deste século e deste milénio continuem a dar
voltas dentro de nós, destroçando-nos, matando-nos.
Assim, don Gelman, esta carta era apenas para lhe dizer que,
sinceramente, esperamos poder dizer-lhe algum dia: Feliz século
novo! Feliz novo milénio!
Saúde e que o tempo liberte finalmente a nossa história.
PS armamentista: Naturalmente, a arma que trago é uma carabina AR-15, calibre 5.56 mm.. Pedi-a emprestada a um polícia no dia 1 de Janeiro de 1994. Claro que corria tão depressa que não cheguei a ouvir a sua resposta. Aqui a tenho, ontem servia para matar indígenas, hoje serve para que não os matem, ou que já não o façam impunemente.
(*) Tradução e subtítulos da responsabilidade de Anabela Fino