ARGUMENTOS

Crónicas da Idade Mídia

Por Ruben de Carvalho



Depois do congresso do PSD:
Oposição, só à esquerda


Os abundantes comentários de fim de semana sobre o Congresso do PSD afirmaram maioritariamente que o conclave não dera resolução a nenhum dos problemas do partido.
Decorrida uma semana, há contudo tons diferentes.

Na maior parte dos casos, sublinha-se que a vitória de Barroso não fez dele o esperado líder que ponha o partido no caminho da governação, daqui resultando prognósticos de carácter instável da vitória. Mas, mesmo cingindo-se a este aspecto, a maioria dos textos sublinha o problema essencial de um congresso – e de um partido – esvaziado de ideias, pura e simples máquina de acesso ao poder.
É aqui que interessa sublinhar uma outra perspectiva: a crise do PSD não será uma situação transitória e circunstancial, passível de ser ultrapassada como outras foram, mas antes o resultado de mutações mais profundas, que alteram o perfil social, político e orgânico do partido e esgotaram as dinâmicas e padrões de identidade que até aqui haviam funcionado.
Um texto interessante é o desabafo de Maria João Avilez no EXPRESSO: «Talvez a conclusão mais óbvia seja esta que parece simples e não é: o PSD não é o mesmo». As diferenças que a seguir enumera apontam exactamente para o que se referiu: o esvaziamento político e a transformação da máquina partidária num puro aparelho de clientelas.


Política e ideias

O que se torna deveras interessante neste olhar de alguém que conhece bem o PSD é a tomada de consciência do esvaziamento do jogo político sem referir o esvaziamento ideológico.
Maria João Avilez recorda os tempos passados em que o PSD apresentava uma invejável dinâmica partidária, mas é inteiramente omissa quanto à identificação do tecido ideológico e programático que a sustentaria e que não seria seguramente a que decorria da designação «Popular» primeiro, Social-Democrata depois...
O PPD/PSD constituiu-se como um partido de centro-direita que arregimentou várias famílias da direita e do centro ao longo de duas décadas em função do quadro político e do equilíbrio de forças do momento. Desde votar a favor das nacionalizações e da Reforma Agrária em 1976 a apresentar um candidato presidencial fascizante como Soares Carneiro, desde fazer governos de «bloco central» a protagonizar a onda neo-liberal dos anos 80, tudo coube no PSD.
O PSD foi o partido possível da direita quando o 25 de Abril impôs o processo de transformações que cimentaram o regime democrático. No mesmo EXPRESSO, José António Saraiva recorda que há 25 anos o semanário era caracterizado como sendo «MRPPD», dado o alegre convívio na sua feitura de «maoístas» e «ppdês». «O que unia estes dois grupos – esclarece candidamente – era a oposição ao Partido Comunista. Os militantes do MRPP e do PPD aliavam-se para combater o PCP, que nesse época dominava o Estado».
O anticomunismo puro e simples constituiu de facto o cimento que arregimentou no PSD uma amálgama de áreas da direita convicta com um bem mais vasto eleitorado tocado pela propaganda anticomunista, pelo caciquismo, pela própria frustração que às esperanças de 74/75 contrapôs a política de direita posterior. PS e PPD aliaram-se em diversas circunstâncias e com os mais diversos figurinos, mas essas alianças tiveram sempre um fio condutor: uma política que contrariasse o quadro definido na Constituição de Abril.
Com o cavaquismo, o PSD ganhou a iniciativa face a um Partido Socialista que havia cumprido uma primeira etapa desse percurso e que nele, como não podia deixar de ser, se esgotara; o cavaquismo foi uma quase passagem de testemunho entre duas formações políticas próximas não por um projecto comum definido pela positiva, mas antes por um comum projecto de liquidação do que o 25 de Abril criara.
A década de governação cavaquista esgotou-se por duas vias: na oposição popular face ao crescendo de privatizações, submissão ao capital internacional, facilitação de acumulações capitalistas, liquidação de direitos de trabalhadores, etc, mas também pelo falhanço global das teorias económicas do neo-liberalismo. Reagan, Thatcher ou Cavaco cumpriram o seu papel na destruição das conquistas sociais do século XX, posto o que
foram sumariamente despedidos.
Os dez anos de cavaquismo, de neo-liberalismo puro e duro, deram porém ao PS uma oportunidade de recuperação. A componente anti-fascista que restara e que dera alibis de esquerda ao papel inicial de ponta de lança da recuperação da direita foi sendo progressivamente eliminada, fora pelas leis da vida, fora pela hegemonia ideológica da direita (o sucesso, o enriquecimento, o luxo) que acompanhava o cavaquismo. Contando até com uma substituição dessa presença republicana e socializante mediante uma presença católica com um discurso de solidariedade social, o PS ficou livre para defender e pôr em prática uma política de direita apresentando-a como de esquerda, não porque o fosse, mas porque surgia como «alternativa» ao neo-liberalismo cavaquista.
Ao ganhar as eleições em 1995 o PS aproveitou o desgaste do cavaquismo, mas a política que veio a seguir é a sua pura continuidade, corrigida nos excessos, mas deles também aproveitando na atenuação de conflitualidade social antes enfrentada pelo PSD.


Da necessidade de um partido

O grande e essencial problema do PSD hoje como partido «possível» da direita é que corre o risco de deixar de ser necessário. No enevoado universo dos interesses económicos e das políticas mais conservadores, o CDS-PP forma uma barreira à direita; os governos Guterres fazem o mesmo que o PSD faria, com a exclusiva diferença de nas prebendas governativas servirem a sua clientela, deixando a social-democrata tanto mais frustrada quanto, afinal, não discorda da ementa, apenas protesta pelo serviço... A implosão do PSD coloca-se assim como uma perspectiva bem mais plausível do qu o surgimento de um messiânico salvador que sente de novo à mesa do orçamento a clientela social-democrata.À primeira vista, poder-se-á dizer que não tem grande importância, é o puro desaparecimento de um instrumento que perdeu funcionalidade. Mas o grande problema é que esta funcionalidade, não correspondendo a uma profunda clivagem ideológica face ao PS, introduzia factores dinamizadores e mesmo contraditórios de que a democracia carece. Dilacerando-se de congresso para congresso, o PSD pode, na sua progressiva perda de força, deixar a política de direita com capacidade de alguma sedução ao centro exclusivamente entregue ao PS. Do ponto de vista da orientação política, nenhum deles foi alternativa ao outro nas últimas duas décadas, mas do ponto de vista da vivência partidária da democracia reflectiram uma conflitualidade que pelo menos impediu a eternização de hegemonias paralizantes do próprio sistema.O fracasso da «oposição» pela direita que o PSD protagoniza torna claro que, por difícil e complexa que seja, a oposição à governação PS tem de ser feita pela esquerda. E não apenas por exigência de uma alternativa política, mas também da viabilidade do próprio regime.






O termo «grotesco» utilizado para classificar o regresso de Pinochet ao Chile e o aparato militar que o rodeou peca apenas por defeito. Mas o incontornável é que se gerou uma situação melindrosa para o regresso do país de Allende à normalidade democrática. A ditadura foi derrubada no Chile em circunstâncias políticas complexas, nas quais não houve condições para destruir o principal instrumento do golpe de 73: umas Forças Armadas controladas pela direita. Seria bom que os universalmente muito activos e protagonisantes magistrados recordassem que é a sociedade que faz as leis e não as leis que fazem as sociedades e que são as massas que transformam a História e as sociedades. E fazem-no estruturadas nas suas organizações, pesando em cada momento o equilíbrio de forças e as possíveis alianças, definindo a sua estratégia de luta e de intervenção - não à luz do parágrafo tantos do artigo tantos da lei tal. Juridicamente, a iniciativa de Baltazar Garzon foi seguramente interessante e mediática; políticamente, o balanço está, no mínimo, por fazer.


«Avante!» Nº 1371 - 9.Março.2000