O poltrão



Quando o ditador Augusto Pinochet já se encontrava a bordo do avião-hospital da Força Aérea chilena que, esta semana, o levou de regresso ao Chile, uma prenda de última hora deu entrada na aeronave estacionada algures na Grã-Bretanha.
A prenda consistia na reprodução de uma salva de prata feita na Inglaterra de 1588 para assinalar a vitória britânica sobre a Invencível Armada espanhola, e quem a enviou ao velho fascista foi a ex-primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher.
O simbolismo da oferta não podia ser mais insolente: por interposta salva de prata, Thatcher associava a besta chilena ao júbilo de mais uma vitória da Inglaterra sobre a Espanha.
Só que a vitória em presença não foi a da Inglaterra sobre a Espanha, por muito que isso agradasse ao desvario imperial da senhora Thatcher. Vitória, se a houve, foi a da hipocrisia dos governos britânico e espanhol sobre as suas próprias juras democráticas, aliando-se nesta ignomínia de libertar o carniceiro de Santiago a pretexto dos direitos humanos.
Entretanto, usando a mesma desfaçatez com que fingiu a sua salvadora incapacidade física e mental, Pinochet ergueu-se da cadeira de rodas mal pisou solo chileno para, provocadoramente, passar revista às tropas que o aguardavam em grande continência. Esta arrogância do ditador seria uma afronta para os seus compassivos ex-carcereiros, se honra houvesse tanto na libertação como nos libertadores. Assim, o que sobrou desta farsa foi a exposição mundial quer da cobardia de um criminoso reles - tão poltrão que não hesitou em se mascarar de velho indefeso para fugir à justiça -, quer da pusilanimidade de um governo trabalhista que se reivindica inventor da «terceira via para o socialismo».
Todavia, apesar do fracasso deste processo e da aparente impunidade com que Pinochet dele saiu, nada ficou como dantes, tanto para o direito internacional como no que ao ditador diz respeito.
O direito viu-se, a um tempo, enriquecido no seu raio de acção e amesquinhado na sua essência, deixando à vista o quadro contraditório de um ordenamento jurídico internacional que deu passos em frente na defesa dos direitos do homem para se enfiar - e, com ele, o próprio avanço conseguido - no bolso dos governos que tudo podem e decidem, na gestão totalitária dos «interesses de Estado» de que são, aliás, intocáveis sacerdotes.
Foi assim que uma decisão política, conluiada pelos governos inglês e espanhol, barrou liminarmente o caminho aos tribunais que se propuseram julgar Pinochet e deixando claro de que lado estão estes democráticos corações que governam na União Europeia.
Quanto a Pinochet, a humilhação pessoal, profissional e política já ninguém lha tira, deixando este «salvador da pátria» exposto, aos olhos do seu país e do mundo, não apenas como o tirano brutal que os seus crimes atestam, mas também como um poltrão sem pinga de coragem nem réstia de dignidade, que o seu comportamento agora confirmou.
Valha-nos isso. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1371 - 9.Março.2000