Argumentos sem peso



Tendo como pano de fundo velhas simpatias pela Unita e antipatias ainda mais velhas pelo MPLA, Mário Soares falou do regime angolano em termos que o Governo daquele país considerou «ofensivos e humilhantes». Em resposta, o Ministro da Informação de Angola declarou «saber» que Mário Soares faz parte do grupo dos «maiores beneficiários do tráfico ilícito de diamantes e marfim praticado por Jonas Savimbi». Soares achou a acusação «cómica». O Ministro («esse ministro, esse Neto», segundo Soares) reafirmou a acusação e disse possuir provas do que dizia. «Cómica» ou não, a acusação é muito grave. Mas, enquanto aguardamos que o Ministro angolano prove o que disse, atentemos noutras vertentes da questão.

Avaliando a abordagem do caso na Assembleia da República, Mário Soares considerou «importantíssima» a posição tomada pelo PP, «deu-se por satisfeito» com as posições do PS, do PSD e do BE e «manifestou compreensão pelo silêncio do PCP». Quanto à reacção do Governo, expressa através de uma tomada de posição do Ministério dos Negócios Estrangeiros e de declarações do Primeiro Ministro, considerou que «não é satisfatória». E pergunta: «Como é que se aceita que uma referência democrática (está a referir-se a si próprio, obviamente) seja acusada de tráfico de diamantes?» - e, ao que parece, aguarda resposta. É essa, aliás, a linha de pensamento seguida por alguns amigos mais chegados de Soares. Ora, tal linha de pensamento afigura-se-me pouco consistente. Com efeito, parece-me no mínimo insólita esta atitude de refutar uma acusação concreta (mesmo que injusta) promovendo o (ainda que inocente) acusado à qualidade de «intocável». Com a agravante de essa «intocabilidade» ser sustentada por mais que duvidosas caracterizações, como sejam as que pretendem apresentar Mário Soares como incontestável e louvável «pai da democracia» e como exemplo de «coerência do discurso e da luta contra as ditaduras e em defesa dos direitos humanos». Ainda que assim fosse, isso de pouco, ou nada, serviria no caso em questão e estaríamos sempre face a uma série de argumentos sem peso. Acresce que, quanto ao papel de Soares na democracia portuguesa, tenho para mim que ele se traduziu na construção, em Portugal, de um modelo de democracia importado, moldado à medida dos desejos e interesses dos donos do Mundo, carenciado de conteúdo democrático e assente num limitado conceito de direitos humanos. E, como sabe quem quer saber, só ironicamente se pode falar da tal «coerência do discurso e da luta» do Dr. Mário Soares – amigo do peito de vários «mobutus», apoiante declarado da invasão de várias «granadas», crítico implacável de alguns «senhores da guerra», sem dúvida, mas defensor acérrimo de outros... — José Casanova


«Avante!» Nº 1371 - 9.Março.2000