O gesto
Face à enormidade da catástrofe, à imensa
toalha de água que alastra e alaga territórios inteiros,
deixando sem abrigo centenas de milhares de pessoas e muitos mais
à fome e à míngua de quase tudo, menos da dor e do desgosto, e
muitos mais ainda à mercê das doenças que ameaçam, e já
tantos mortos, e tantos mais sem vislumbre de futuro, seria de
esperar que faltassem as palavras para exprimir a condolência e
a solidariedade.
Falamos de Moçambique, de que não faltaram imagens, que nos
entraram casa dentro, inquietando cada um de nós e convergindo,
parecia, quase todos numa única questão: que fazer para acudir
rapidamente? Como agir rapidamente para salvar vidas? Como,
rapidamente, socorrer, aliviar sofrimentos, prevenir dores
maiores?
Afinal, passados dias e dias sobre a invasão das águas,
concluímos, nós, os portugueses que, sem paternalismos nem
laços de neocolonialismo que nos movam, apenas tocados por
aquela fraternidade particular de quem fala a mesma língua e
exprime a dor nas mesmas palavras, que as palavras não faltaram.
Houve, mesmo, e se calhar estão aí para durar enquanto não
secarem as savanas e as ruas, uma abundância de palavras.
Sobretudo se as compararmos com a solidariedade real, aquela que
se mede não apenas em gestos mas, muito materialmente, em
alimentos e remédios, em transportes e agasalhos.
Durante muitos dias, um secretário de Estado português
fartou-se de dizer que era mais fácil trazer imagens da
tragédia do que organizar a ajuda. Repisava o mesmo a cada
intervenção televisiva, já os jornalistas mostravam
impaciência, a sentirem-se quase acusados de mostrarem a
realidade, de não darem «tempo» ao Governo de, sossegadamente,
tomar medidas.
Se se tratasse apenas de uma operação de ingerência militar, a
correr à frente dos Estados Unidos para esmagar uma Sérvia,
outras bósnias cantariam. Não iriam faltar helicópteros,
obuses e pesadas botas, com a TV a mostrar as sentidas despedidas
das famílias da rapaziada que ia «cumprir o seu dever» e
«defender a Pátria», seja lá o que isso for na linguagem
integracionista dos órgãos do Estado. Gastas tantas palavras de
solidariedade vazia, veio o gesto. Em forma de «perdão» de uma
dívida. Gesto sem dúvida importante. Mas que não alivia em
nada este sofrimento de hoje. Leandro Martins