Não abusem

Após o chamado «fim da guerra fria» , a Fundação Carnegie, um dos covis onde os lobos tramam os planos de ataque USA, uma selecta elite (Abramowitz, Albright, Scheffer e outros ) trabalhou afanosamente na elaboração de uma nova estratégia mais activa que substituísse a anterior e assegurasse a salvação da NATO, como instrumento indispensável de preponderância na Europa. O seu relatório de 1992, Mudar os nossos hábitos: o papel da América no Mundo Novo, preconizava em conclusão adoptar um «novo princípio das relações internacionais: a destruição ou a deslocação de grupos de população no interior dos Estados podem justificar intervenção internacional». E para tal os EUA deviam «realinhar» a NATO e a OSCE. No mesmo ano, David Scheffer é co-autor doutro estudo da mesma Fundação, A autodeterminação na Nova Ordem Mundial, onde traça o cenário de futuras acções: «Quando uma reivindicação de autodeterminação desencadeia um conflito armado que se torne uma crise humanitária» a intervenção externa é «um imperativo indiscutível» , pelo que há que «redefinir o princípio de não ingerência nos assuntos internos dos Estados». E para tal «os EUA devem procurar um consenso à volta da sua posição no seio das organizações regionais e internacionais , mas não devem sacrificar os seus próprios juízos e princípios se um tal consenso faltar». O conhecido desabafo de Madeleine Albright – «Para que serve ter a maior força militar do mundo se não a utilizarmos ?!»- ganha assim estatuto de brutal directiva para a política externa do imperialismo americano. Os povos dos Balcãs ( e não só...) que o digam.

Muitos outros «especialistas» trabalham nesta matéria. Zbigniew Brzezinski, no seu livro O Grande Tabuleiro de Xadrez, de 1997, fornece fundamentações geoestratégicas para o imperialismo USA, tendo como alvo central aquilo a que ele chama «os Balcãs Euroasiáticos», indo das margens do Mar Negro às fronteiras da China, com Cáucaso e Cáspio no coração. Na conferência de imprensa em Paris para a apresentação da obra , em 1998, um jornalista pediu-lhe para explicar o «paradoxo» de a sua doutrina ser tão «pragmática e impregnada de realpolitik» e ele ter sido um destacado «defensor dos Direitos do Homem». Descarado, Brzezinski esclareceu : «Elaborei essa doutrina(...) porque era a melhor maneira de desestabilizar a URSS. E funcionou. " Descarado, deu um exemplo de como não se limitava a belas palavras sobre os Direitos do Homem mas sabia também fazer o trabalho sujo. Contou como a CIA começou a fornecer armas aos contrarevolucionários afegãos em meados de 1979, seis meses antes que a URSS acedesse aos pedidos de ajuda do Governo do Afeganistão. E rematou : "Nós não obrigámos os russos a intervir, mas conscientemente tornámos essa intervenção mais provável . Esta operação clandestina era uma excelente ideia. Teve como efeito atrair os russos para a armadilha afegã. " Quantas mais armadilhas se estão tecendo ?!

Estes casos ficam em geral no segredo dos deuses : trata-se de "alta política", não para consumo dos simples mortais. Por isso, a barragem de condicionamento ideológico sobre o "direito à autodeterminação", o " direito de ingerência humanitária", os "direitos do Homem", se torna uma litania interminável, adequadamente teorizada e ilustrada mediaticamente por imagens de horror . Tal lavagem ao cérebro serve às mil maravilhas os velhos / novos apetites do grande capital e da força político-militar imperialista que o serve. É imprescindível denunciar os seus mentores originais. Para que não abusem da nossa razão e do nosso coração. As vítimas são os povos. E os povos zangam-se. — Carlos Aboim Inglez


«Avante!» Nº 1371 - 9.Março.2000