O «modelo» americano
Nasceu na copa de uma árvore no meio da
vastidão inundada, deram-lhe o nome de Rosita e as televisões
contaram para todo o mundo a história do seu nascimento como
símbolo da réstea de esperança que sobrevive até no meio das
maiores calamidades.
Foi em Moçambique, nos piores dias das cheias, quando as imagens
aéreas das zonas sinistradas eram de difícil captação porque
os meios aéreos eram dramaticamente escassos e, ao que então se
disse, a BBC e talvez poucas mais estações entre as mais
poderosas haviam conseguido impor uma espécie de monopólio das
reportagens feitas do ar. Por isso a RTP repetia imagens de
serviço noticioso, o que logo foi aproveitado para que contra
ela fossem disparadas algumas críticas pelos que pouco se ralam
com a afrontosa mediocridade dominante nas Tvs portuguesas
mas têm alérgicas reacções de rejeição quando se lembram de
que ainda por aí há uma estação pública de televisão.
Só alguns dias mais tarde os media deram a notícia de que,
finalmente, estaria a chegar a Moçambique ajuda internacional de
dimensão significativa.
A Moçambique; ainda não necessariamente às zonas da desgraça.
Era tardia a ajuda e, se como foi dito a abrir um dos
noticiários «mais vale tarde que nunca», a verdade é que para
muitos moçambicanos, nem se sabe ainda quantos, já não podia
ser nenhuma a diferença entre tarde e nunca. Até lá, houvera
aquela simpática rábula do perdão parcial ou total, conforme
os casos, da dívida externa de Moçambique, mas os benefícios
daí decorrentes só serão efectivos na fase de reconstrução,
tempo em que também é esperável, naturalmente, que a
solidariedade permita algumas recompensas às empresas dos
países dadivosos que conseguirem negócios no âmbito dessa
tarefa.Também foi dito que uma parte dos géneros enviados para
socorro dos sinistrados já circulava no mercado negro. Talvez
tenha faltado acrescentar que os desvios de géneros dificilmente
terão sido feitos pelo povo mais indefeso, e também que o
acesso à independência não foi complementado, porque não
podia tê-lo sido, pela supressão da existência de diversas
classes no interior do país libertado apenas do colonialismo.
Uma informação fugaz
Foi pelo menos num
dos noticiários em que a catástrofe moçambicana teve natural
destaque que surgiu a informação de que a comunidade
científica, ou pelo menos parte dela, atribuía ao progressivo
agravamento do chamado «efeito de estufa» a dimensão invulgar
das chuvadas que estiveram na origem das inundações, à
semelhança do já ocorrido com outros flagelos de origem
meteorológica noutros lugares do mundo embora, suponho eu, sem
consequências trágicas à mesma escala.
A verdade é que a informação passou fugazmente, que não a vi
repetida ou desenvolvida noutros noticiários da mesma ou de
outras estações, que também não dei por ela na imprensa
escrita, pelo menos com o relevo que, a ser verdade ou de
veracidade provável, se justificaria. Talvez seja apenas uma
hipótese excessiva ou até absurda, talvez tenha fundamento, um
dia se saberá ao certo se os que mandam nestas coisas da
informação livre derem licença.
O que parece não suscitar dúvidas é que «o efeito de estufa»
tem vindo a ser denunciado por fontes autorizadíssimas como
constituindo uma grave ameaça, a médio/longo prazo, para a
subsistência de boas condições de sobrevivência humana no
planeta. E também que é consequência directa da
industrialização selvagem, sem os mínimos cuidados de
preservação ambiental que poderiam vir embaraçar a obtenção
de lucros máximos, realizada pelas sociedades ditas avançadas
do hemisfério norte que, por acaso, agora não se mostraram
excessivamente lestas no socorro a Moçambique. Ora, como bem se
sabe, esse tipo de industrialização foi desde sempre liderado,
se não imposto por força das lógicas concorrenciais, pela
máquina financeira-industrial dos Estados Unidos. Não será
decerto forçar as palavras dizendo-se que se trata do «modelo»
americano.
Temos, pois, que talvez o «modelo» americano, cujo brilho e
dinâmica de vitória impressiona tanto o mais variado tipo de
gentes, seja responsável não só por desgraças e crimes de que
é o causador insuficientemente oculto, mas também por
catástrofes como a de Moçambique. Que isto dizer que uma parte
dos lucros americanos tem como contrapartida os mortos
moçambicanos. O entendimento das coisas obriga a que reflictamos
sobre isto. Correia da Fonseca