Mentalidades
mudam, discriminação continua
Omitir
a identidade empobrece a existência
Apesar das profundas alterações nas mentalidades, a discriminação por razões de orientação sexual continua a existir, impondo-se medidas no campo legislativo para lhe pôr fim. Sobre o tema a JCP organizou um debate na noite de terça-feira. O Avante! quis conhecer as posições da associação «Ilga» e registou a opinião de dois homossexuais.
Os homossexuais são alvo de que tipo de discriminação? Como
podem viver a sua sexualidade e como é que esta afecta o seu
dia-a-dia? Que problemas têm de enfrentar? Falámos sobre estas
e outras questões com Rita Ricardo e Luís Novo, activistas do
grupo jovem da Ilga (Associação Internacional de Lésbicas e
Gays), e com dois homossexuais que preferem não assumir a sua
identidade e que aqui trataremos como Pedro e Francisco.
Luís Novo diz que, no quotidiano, está mais presente uma certa
omissão do que propriamente discriminação. «Há uma série de
coisas que temos de esconder. Por exemplo, quando quero falar do
meu namorado falo da pessoa com quem namoro, sem especificar o
sexo. E não posso dizer aos meus colegas da faculdade que
trabalho na Ilga. Somos obrigados a omitir grande parte da nossa
vida pelo facto de sermos homossexuais.»
«Não tenho a mesma liberdade que os outros. Não posso falar da
minha vida a mais de metade das pessoas que conheço, tenho de
ter constantemente cuidado com o que digo, ver onde estou antes
de falar», explica Francisco.
«A partir de certa altura, as pessoas começam a estranhar se
não se tem namorado ou namorada e torna-se quase obrigatório
ter de arranjá-los para esconder a homossexualidade. Neste caso,
além de ter de omitir que se é, tem de se enganar», acrescenta
Rita Ricardo. «Vive-se constantemente uma personagem, é-se
actor na sua própria vida.»
Lidar com os preconceitos
Se assumir a sua identidade passa
inevitavelmente por assumir a sua sexualidade, há que fazer frente aos preconceitos
dos outros. Mas qual a melhor maneira? «Encarando as coisas de frente, mas nem
sempre pode ser feito assim», diz Rita.
«O melhor a fazer quando as pessoas sabem é ter uma atitude perfeitamente normal.
Se escondermos é pior, as pessoas discriminam mais», considera Luís. «Se me
chamarem alguma coisa, não ligo porque sei que são os outros que estão errados.
E isso acontece porque me sinto bem comigo próprio», acrescenta.
Francisco conta que quando o tema surge em conversa com amigos, procura mostrar
o seu ponto de vista, sem assumir.
As associações gays desempenham aqui um papel importante, funcionando
como locais de apoio, alternativos aos espaços nocturnos, onde as pessoas podem
conversar abertamente sobre os seus sentimentos e questionar-se. A Ilga tem
inclusivamente um grupo de inter-ajuda para quem tem dúvidas, que conta com
a assistência de dois profissionais.
Actualmente, a associação está a desenvolver um projecto dirigido aos estudantes
e professores do ensino secundário e superior.
Reivindicações
Desengane-se quem
pensa que a Ilga é uma associação de homossexuais ou para
homossexuais. É, sim, uma associação que defende os direitos
dos homossexuais. Prova disso é que a Rita é heterossexual e
como ela há outros activistas na associação que não são gays.
O que se procura é conquistar os direitos que esta minoria vê
negados e pôr fim à discriminação.
Mas quais são as suas principais reivindicações? De entre uma
longa lista, destaca-se a explicitação no artigo 13 da
Constituição que a orientação sexual não pode ser motivo de
discriminação, à semelhança do sexo, raça, língua e
convicções políticas ou ideológicas.
O enquadramento legal das uniões de facto, sem qualquer
discriminação baseada na orientação sexual, é outra
exigência. O PCP apresentou recentemente um projecto-lei na
Assembleia da República nesse sentido.
Outras reivindicações passam pelo fim das discriminações dos gays
no local de trabalho, na atribuição do poder paternal dos
filhos, como dadores de sangue e no ingresso nas Forças Armadas
e na PSP.
A Ilga defende ainda o direito à educação sexual
anti-homófoba nas escolas.
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Família:
o grande medo
«É mais fácil
chegar a casa e dizer "Pai, esta é a minha namorada"
do que "Este é o meu namorado"», conta Pedro. É por
isso que normalmente a família é sempre a última a conhecer a
homossexualidade do filho ou da filha.
«Começa-se por contar aos amigos. A maioria não diz aos pais.
Estes acabam por saber, mas mais tarde», explica Luís Novo, que
aconselha a quem queria contar e tem dúvidas sobre a reacção
da família a esperar por ter alguma estabilidade económica. É
que não são raros os casos de pais que expulsam os filhos de
casa.
Pedro acha que a família sabe que ele é gay: «Não me
querem confrontar com isso, mas sabem. Eu até durmo com o meu
namorado lá em casa. Se eles querem pensar que é amizade, não
vou forçá-los a pensar outra coisa. A minha mãe já trata o
meu namorado como se fosse o genro.»
No entanto, não pensa contar em casa. «Não tenho necessidade
que saibam. Se visse alguma vantagem nisso, contava. Mas não,
vivo a minha vida como se soubessem.»
Assumir
Assumir a
sexualidade é fundamental. Como diz Francisco, «não imagino a
minha vida se não me tivesse assumido. Deve ser um horror. Mas
não sei se é mais difícil assumir perante os outros ou perante
nós próprios.»
Hoje é cada vez mais fácil «sair do armário» porque a
mentalidade das pessoas está a mudar, em especial a dos jovens.
Luís Novo fala em tolerância e defende que ainda não há uma
aceitação geral.
«Há alguns anos atrás, os homossexuais não eram visíveis e
as pessoas podiam discriminar abertamente. Mas as pessoas
começaram a perceber que ser homossexual não é ser um bicho.
Quando vêm entrevistas na televisão, percebem que os
homossexuais são pessoas normais. A partir do momento em que o
objecto que discriminam passa a ter rosto, têm mais cuidado e
pensam duas vezes no que vão dizer.»
E qual é a importância de os gays se assumirem? Rita
Ricardo responde: «Contribui muito para as pessoas perceberem
que a homossexualidade não é nada que se deva esconder. Ser
homossexual não é ter uma doença ou ser anormal, como já foi
considerado há uns tempos atrás. É simplesmente uma coisas
normal, como ter olhos castanhos.»
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Adolescência:
o período mais difícil
Normalmente é por volta dos 18 anos que os homossexuais se
começam a assumir enquanto tal. Mas até lá, passam por
períodos difíceis experimentando todo o tipo de sentimentos, da
confusão ao medo, passando pela fuga e a negação.
Francisco conta que aos 10 anos se começou a perceber que não
se interessava por raparigas, mas sim pelo corpo masculino. Não
pensava directamente no assunto, mas diz que havia traços que
mais tarde identificou como sendo indícios de homossexualidade.
«Estes traços estão sempre presentes, mas a maneira como somos
educados tem um grande peso até aos 15 anos. Eu fui educado para
ter uma namorada e me casar, e era isso que eu pensava na altura
porque a minha sexualidade ainda não estava desenvolvida»,
conta.
Aos 17 anos, desistiu de namorar com raparigas, na mesma altura
em que se apaixonou por um rapaz. «Quando acabou, voltei ao
mesmo marasmo. Não pensei que fosse homossexual. É natural que
eu próprio estivesse a fugir a isso. Quando temos de admitir uma
coisa chata, foge-se enquanto se pode.»
Francisco diz que vivia um período cinzento, «em que sei que
não dá com raparigas mas não sei que sou homossexual». Só
aos 19 anos se assumiu perante si próprio. Nessa altura, dois
amigos gays assumiram-se e ele, na mesma conversa,
contou-lhes de si próprio.
A partir daí, passou a frequentar bares homossexuais e o canal
«Gay Portugal» da internet. «Comecei a falar com
pessoas, o que me ajudou bastante», diz. «A partir daí pensei:
"Sou homossexual, agora aguenta-te. Vamos andar com isto
para a frente."»
Solidão
Pedro teve uma
experiência semelhante. Apaixonou-se e namorou com um rapaz, mas
nem sequer lhe passava pela cabeça que era gay. O pior
veio depois. «Quando esse rapaz acabou comigo, senti-me o
único, não conhecia ninguém. Pensava que era só com ele»,
explica.
Como Luís Novo refere, uma das fases mais complicadas é a da
solidão. «O problema mais grave é quando as pessoas descobrem
que são homossexuais e pensam que são os únicos. Não têm
ninguém com quem falar sobre o que sentem. Escondem uma parte
dos seus sentimentos e, para um jovem, é importante poder falar
abertamente sobre a sua identidade. Isso leva à depressão e
pode levar ao suicídio. A taxa de suicídio dos jovens é duas a
três vezes superior entre os homossexuais.»
Rita Ricardo lembra que há pessoas que «saem do armário»
muito depressa, mas há outras que demoram anos. Muitos fazem
inclusivamente um grande esforço para serem heterossexuais. E
há ainda a ideia de que se se é gay, têm de ter certos
maneirismos.
Pedro diz que passou por essa fase: «Andava com vestidos que as
minhas amigas me emprestavam, colares, roupas muito apertadas.
Depois já não dava para disfarçar, tinha de assumir para toda
a gente. Na altura pensava: "Sou homossexual, sou diferente,
vou provocar as pessoas."» Depois cansou-se. «Acho que faz
parte da adolescência.»
«Direitos Sexuais» foi o tema proposto para a discussão de uma mesa redonda organizada pela JCP, na noite de terça-feira, em Lisboa. Com a participação da psicóloga Graça Mexia, o presidente da Ilga-Portugal, José Manuel Fernandes, e um representante da Associação para o Planeamento da Família, Miguel , todos concordaram que a sexualidade continua a ser um assunto difícil de abordar, nomeadamente nas escolas.
Prova disso é que a lei que prevê a educação sexual continua à espera de ser regulamentada e muitos são os professores que mantêm reservas sobre a sua aplicação. O mesmo se passa com o planeamento familiar, gratuito nos centros de saúde, mas ainda rodeado de grande secretismo em alguns locais, em especial nas áreas rurais.
Graça Mexia sublinhou que informar sobre os direitos é fundamental e que nem todos sabem que qualquer pessoa se pode dirigir a consulta de planeamento familiar mesmo se não for no centro de saúde da sua zona e que os jovens podem passar à frente das habituais listas de espera.
Mas, se os preconceitos são graves, pior é quando a discriminação é praticada pelo próprio Estado. José Manuel Fernandes não esqueceu a falta de igualdade de oportunidades dos homossexuais e os problemas no trabalho e no seio da família que muitos gays têm de enfrentar devido à sua orientação sexual.