O candidato comunista, Guennadi Ziuganov,
em segundo lugar com 30 por cento dos votos,
questiona a lisura do processo eleitoral
Russos apostam em Putin



Vladímir Putin ganhou as eleições presidenciais de domingo na Rússia com 52,6 por cento dos votos. O que fará com a vitória é ainda uma incógnita.

A vitória de Putin logo na primeira volta das eleições presidenciais russas não foi tão fácil nem tão pacífica quanto as últimas sondagens faziam prever. Os resultados estiveram em dúvida até à contagem dos últimos votos, e são agora contestados por Guennadi Ziuganov, o dirigente do Partido Comunista, que anunciou a sua intenção de protestar perante a Comissão Eleitoral Central pelo que classifica de «falsificação em grande escala».
Ziuganov, oficialmente em segundo lugar com 30 por cento dos votos, alega que os resultados preliminares obtidos através do sistema electrónico automatizado não são fiáveis e que há que esperar pela conferência das actas do escrutínio, o que poderá abrir caminho - a confirmar-se a ocorrência de irregularidades - à realização de uma segunda volta.
As possibilidades de que tal venha a ocorrer são remotas, apesar de os observadores internacionais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) terem reconhecido que não puderam acompanhar o escrutínio na Tchétchénia, onde segundo as autoridades russas votaram cerca de 65 por cento dos eleitores, maioritariamente a favor de Putin. No restante território, segundo a OSCE, as eleições decorreram dentro da normalidade.
Quanto ao responsável pela campanha do presidente eleito, Dmitri Medvédev, desvalorizou as acusações de Ziuganov e apressou-se a afirmar que os resultados preliminares são «absolutamente democráticos», pondo de lado a possibilidade de que possam vir a ser substancialmente alterados.


Sem promessas
e sem programa

Seja o que for que vier a resultar das suspeitas levantadas pelos comunistas russos, Putin assume-se desde já como um vencedor tranquilo, satisfeito consigo próprio por não ter feito na campanha promessas que não poderia cumprir, enquanto vai avisando que, tendo em conta a situação do país, «não vale a pena esperar por milagres».
Pelo que os russos terão de esperar, bem como os observadores internacionais, é pelo programa do novo governo e pelo próprio governo que vai ser formado. Sobre o primeiro Putin ainda nada disse, e o que se sabe é que tem uma equipa de especialistas a tratar do assunto; sobre o segundo, o presidente pediu aos colaboradores mais próximos que lhe apresentassem ideias tendo em vista uma reestruturação governamental.
A vitória anunciada de Putin não deixou no entanto de ser assinalada por algo mais do que os tradicionais brindes: na segunda-feira, três mísseis nucleares de longo alcance foram lançados de outros tantos submarinos Delta-4. Um aviso «à navegação» de que a Rússia tem uma palavra a dizer sobre a revisão que os EUA pretendem fazer do tratado ABM sobre mísseis balísticos (num momento em que o chefe da diplomacia russa, Igor Ivanov voltou a lembrar que «a guerra das estrelas» que Clinton defende representa «um grave golpe para a segurança e a estabilidade internacionais»), e mais uma achega para a compreensão do sucesso de um homem que até há poucos meses os russos desconheciam.

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Putin com todos

Vladimir Putin pretende convidar os seus adversários políticos a participar no governo. A informação foi avançada segunda-feira pela agência Interfax, segundo a qual Putin manifestou a intenção de sondar alguns dos seus opositores para saber «se estão dispostos a trabalhar no quadro da política levada a cabo pelo governo». Em caso afirmativo, disse Putin, «serão convidados a fazê-lo».
Ainda segundo a mesma fonte, o presidente eleito agradeceu ao dirigente do partido comunista Guennadi Zyuganov, seu principal adversário na corrida presidencial, bem como ao presidente da Câmara de Moscovo, Iuri Lujkov e ao ex-primeiro-ministro Evgueni Primakov, que não participaram nas eleições, o apoio à campanha militar na Tchetchénia. Segundo Putin, os três políticos aperceberam-se de que a guerra na Tchetchénia reforçava a sua popularidade, mas «nem por isso cederam à facilidade de tomar posições antinacionalistas».
Legitimado pelo voto, o homem que já demonstrou saber usar com habilidade o aparelho de Estado em proveito dos seus objectivos, tem agora a vida facilitada. Se é verdade que, tendo em conta os resultados eleitorais não poderá deixar de contar com o peso do Partido Comunista da Rússia, não é menos verdade que os seus restantes adversários se viram reduzidos a expressões que não lhes deixam muita margem de manobra. O liberal Grigori Iavlinski não foi além dos 5,8% e o ultranacionalista Vladímir Jirinovski ficou-se pelos 2,7 por cento, ultrapassado por Aman Tuleev - o poderoso governador da região minera de Kemerovo - que recolheu três por cento dos votos. Acresce ainda que a participação nas eleições foi superior à esperada (68,9 por cento), o que não deixa de conferir um peso ainda maior aos resultados.
Prevê-se que Putin tome posse até 8 de Maio, véspera do tradicional desfile na Praça Vermelha que assinala a vitória sobre o nazismo.

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Optimismo moderado...
ou nem tanto

A vitória de Vladimir Putin nas eleições presidenciais russas de domingo abre «grandes esperanças» numa «Rússia forte, democrática, pacífica e próspera», considerou segunda-feira o chanceler alemão Gerhard Schroeder.

Num telegrama de felicitações enviado a Putin, o chanceler alemão diz estar convicto de que é possível «um novo começo construtivo» nas relações da Rússia com a Alemanha, em particular, e com a Europa, em geral.
«Temos agora, mais do que nunca, que preencher de conteúdos concretos a nossa cooperação ao serviço da segurança europeia para o bem dos povos dos nossos Estados», afirmou Schroeder, que espera reunir-se em breve com Putin.
A União Europeia, por seu lado, manifestou o desejo de uma «parceria estratégica» com a «Rússia democrática». Numa primeira reacção à vitória de Putin, a presidência portuguesa da União Europeia afirmou esperar que com este resultado, «o presidente Putin tenha condições para empreender uma política de reformas e modernização da Rússia». Na declaração do Ministro português dos Negócios Estrangeiros e presidente do Conselho de Ministros da União Europeia, Jaime Gama, citado pela agência Lusa, faz-se votos que tal objectivo seja concretizado num «quadro democrático e de plena inserção na comunidade internacional». «Importante será ver as primeiras atitudes em relação a uma solução política para a Tchétchénia e a forma como tratará o relacionamento da Rússia com a União Europeia e a NATO», refere a declaração.
Em Bruxelas, Javier Solana, representante da política externa da UE, disse confiar «em que Putin utilizará o seu mandato para continuar a consolidar a democracia e o Estado de direito e para prosseguir as reformas económicas».
Quanto ao presidente norte-americano, Bill Clinton, aproveitou a oportunidade para convidar o novo presidente russo a «reforçar a democracia» e a abrir o país às relações internacionais, ao mesmo tempo que sublinhou a necessidade do Kremlin ordenar «uma investigação imparcial e transparente sobre as denúncias das violações dos direitos humanos na Tchétchénia». Madeleine Albright, por seu turno, fez questão de sublinhar que os EUA vão «esperar para ver» como será a actuação de Putin.
Verdadeiramente optimista está o antigo dirigente da União Soviética, Mikhail Gorbatchov, que mesmo antes de conhecer o resultado das eleições afirmou que fosse qual fosse o vencedor «a Rússia está no bom caminho para se reerguer».

 

 

Poderes do Presidente


A Constituição russa, aprovada à medida para Boris Yeltsine, confere ao presidente, eleito por quatro anos, enormes poderes.
A nível executivo, cabe ao ocupante do Kremlin definir as grandes linhas da política interna e externa da Federação Russa. Enquanto Comandante em Chefe das Forças Armadas, dirige o conselho de Segurança, nomeia e destitui os comandantes das Forças Armadas. Em caso de agressão ou de ameaça de agressão, cabe ao presidente decretar a lei marcial, no todo ou em parte do território. O presidente tem ainda o poder de instaurar o estado de emergência.
É o presidente que nomeia igualmente o primeiro-ministro, devendo esta escolha ser ratificada pela Duma (parlamento); caso esta rejeite três vezes a proposta presidencial, é dissolvida. O presidente pode ainda dissolver a Duma no caso desta aprovar por três vez moções de censura ao governo e o presidente não aceite destituí-lo.
As eleições para a Duma e os referendos são convocados pelo presidente, que também tem o poder de suspender as decisões tomadas pelos poderes executivos quando contrariem a Constituição da Rússia e as leis federais.
O presidente russo tem o poder de aprovar decretos e resoluções, apresentar projectos de lei à Duma, promulgar e tornar públicas as leis federais, bem como nomear, após consultas à Duma e ao Conselho da Federação (câmara alta do parlamento), os representantes diplomáticos no estrangeiro e nas organizações internacionais.
O presidente dispõe ainda do direito de perdão, decide sobre questões de cidadania e concessão de asilo político, propõe para aprovação do Conselho da Federação os candidatos ao Tribunal Constitucional, ao Supremo Tribunal e outros tribunais federais e ao lugar de procurador geral, bem como propõe para aprovação da Duma o candidato à presidência do Banco central.

 

O país enfrenta uma grave crise demográfica,
económica e social que ameaça o seu futuro
A Rússia em declínio



Quando, há cerca de um ano, o Partido Comunista russo acusou Boris Yeltsine de «genocídio do povo russo», poucos se deram conta da gravidade da acusação e de como traduzia a realidade do país após quase uma década de poder absoluto.


Hoje, os dados revelam as dramáticas consequências da miséria para que foi atirada a maioria do povo russo: a população, agora de 145,5 milhões de habitantes, diminuiu 2,8 milhões nos últimos oito anos. Segundo um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a esperança de vida dos homens passou de 64 anos em 1990 para 57,3 anos em 1997, enquanto a esperança de vida das mulheres caiu mais de quatro anos, situando-se agora nos 70 anos. No ano passado registou-se uma quebra recorde de 780 000 habitantes (0,5 por cento da população), e as estimativas apontam para a persistência do fenómeno nos próximos dez anos. Nenhum outro país industrializado registou um tal declínio, e nenhum outro apresenta tamanha disparidade entre os sexos nesta matéria.
Com uma taxa de mortalidade superior à taxa de natalidade, a Rússia corre o sério risco de se transformar radicalmente. Segundo o especialista em demografia Murray Feshbach «As consequências [desta crise demográfica] sobre a economia, o exército e a sociedade em geral serão enormes». Baseando-se na degradação catastrófica do estado da saúde no país, o especialista americano conclui que será inevitável o enfraquecimento do potencial económico da Rússia e do seu lugar no mundo.


Futuro sombrio

As difíceis condições de vida, o alcoolismo, o tabagismo, uma alimentação deficiente, são de facto as causas mais apontadas para a elevada mortalidade masculina, agravada pela degradação do sistema de saúde. Oficialmente a assistência médica é gratuita, mas na verdade mais de 50 por cento das pessoas são obrigadas a pagar para terem acesso a um tratamento minimamente adequado, enquanto nas unidades de saúde são cada vez mais frequentes as faltas de material e de medicamentos.
O resultado desta situação reflecte-se no reaparecimento de doenças há muito erradicadas, como a sífilis (desde 1990 os casos registados multiplicaram-se por 70) ou a tuberculose, que está a beira de se tornar numa verdadeira epidemia.
Com uma dívida externa de 150 mil milhões de dólares, ou seja cerca de 90 por cento do Produto Interno Bruto; com a indústria e a agricultura de rastos; a fuga de capitais a dominar a vida económica; o investimento estrangeiro em permanente decréscimo (1,8 mil milhões de dólares contra cerca de sete mil milhões em 1997); a incapacidade do aparelho de Estado para cobrar impostos; salários e pensões sistematicamente em atraso; o desemprego e o subemprego em alta (estima-se que duas em cada cinco pessoas estão desempregadas); e uma economia subterrânea que representa cerca de metade do produto interno, a Rússia tem à sua frente uma perspectiva de futuro bem negra, não apenas para os 42 milhões de pessoas (30 por cento da população) que oficialmente vivem abaixo do limiar da pobreza, mas para a esmagadora maioria dos russos que sobrevive com escassas centenas de rublos por mês.
Desconhecem-se quais as medidas que o novo governo de Vladimir Putin se propõe implementar para fazer face à situação que se vive na Rússia. O novo senhor do Kremlin não achou necessário apresentar qualquer programa ao eleitorado.


«Avante!» Nº 1374 - 30.Março.2000