Lisboas Amargas(*)

Por Manuel Gusmão



A situação histórica actual da poesia é muito complexa, e não cabe aqui sequer esboçá-la. Direi apenas que parece vivermos uma época em que se tornou muito difícil ler poesia, mesmo quando os poemas não apresentam especiais dificuldades de vocabulário, de sintaxe, ou de imaginário. Uma dessas dificuldades está talvez numa divergência entre as expectativas de muitos quanto à poesia e aquilo que ela própria vai sendo. Os adjectivos «poético» ou «lírico» são correntemente usados para referir uma idealização compensatória, um modo de embelezar ou alindar o que é tristemente banal, ou terrível. Ora, a poesia não é fundamentalmente isso. É, entre outras coisas, um fazer, uma arte da linguagem em que cabem tradições diferentes e até opostas, e tem sido muitas vezes uma arte (uma «técnica») da fúria e do insofrimento. É assim que ela é, por exemplo, em Lisboas, de Armando Silva Carvalho, um poeta (e romancista) frequentemente mal amado por quem demasiado se acomoda à sinistra imagem de um país de «brandos costumes».
O título do livro põe o nome de «Lisboa» no plural, o que se compreende quando nos apercebemos que muitos poemas têm como título nomes de espaços e edifícios da cidade («Estrada da Luz», «Travessa do Açougue», «Hospital Curry Cabral»,...). Cada poema tende a ser a construção de um espaço-tempo habitado. Trata-se da configuração de espaços urbanos, que são também quadros mentais e afectivos, e nos quais se inscreve um tempo contemporâneo que entrelaça a vida no presente e a memória histórica, vinda de diferentes tempos. Um poema - «O Tronco» - pode evocar a prisão em que Camões esteve encarcerado, sem dizer o nome do poeta, mas terminando a citá-lo por um seu conhecido verso - «contra um bicho da terra tão pequeno». A densidade dos tempos experimentados num dado espaço conjuga algo que parece ser uma memória autobiográfica com a evocação de outros poetas portugueses - Camões, Sá de Miranda, Cesário, Carlos de Oliveira, Mário Cesariny, Alexandre O’Neil,...) -, ou de outras línguas. Estes espaços-tempos são lugares de encontro e desencontro, multiplamente habitados: pela voz que neles se tece por palavras; pela memória de autores de outros tempos; e por outras personagens, socialmente recortadas ou apenas vislumbradas na fragilidade da sua individualidade humana, agredida ou agreste.
A poesia de Armando Silva Carvalho trabalha sobre uma longa tradição satírica que vem desde as cantigas medievais de escárnio e mal dizer. Mas vem também numa tradição em que o compromisso com a configuração lírica do «mundo real» passa indissociavelmente por uma imaginação que transfigura o mundo e a vida, a partir da atenção ao seu grão mais áspero, ao pormenor mais «grosseiro». Nesse sentido, este poeta é um dos que mais activamente aprende com o admirável Cesário Verde. E, até por isso, torna-se cada vez mais insuficiente e pouco rigoroso dizer da sua poesia que ela é antilírica. É certo que ela se constrói contra certos ambientes verbais e temáticos do lirismo mais rotineiro, e que essa pode ser uma das marcas da sua distintividade, mas só o é verdadeiramente se combinada com a evidência de um furor «sagrado», pelo qual o obsceno, o «baixo» e o «rebaixamento» são formas e modos de uma restituição da integralidade concreta (contraditória) do humano, que «as boas almas» tendem a censurar, a amputar. Neste livro, o desabrido dizer das várias formas do tentacular mal estar da existência, individual e colectiva, no ar irrespirável da cidade mortífera, não cessa de produzir imagens e figuras, combina diferentes registos verbais, e entretece a aspereza, o sarcasmo e o escárnio mais crus, com a mais límpida pureza lírica. Aquele que diz - Tudo nos quer na cama, televisivos, dóceis ao deus/ da tempestade anunciada (25) - é também aquele que escreve - Morte não é palavra de morto./ É a estrela caída/ do céu irreversível em que deixo de ver-te.// Fala comigo na sua língua pura/ e acende em mim a luz do último verso (31).
Nascendo do mal (a solidão, o envelhecimento, a efemeridade e violência dos encontros e do confronto sexual, a humilhação e a exclusão, a iminência da morte), e contra ele protestando, a beleza desta poesia é magoada e magoa. É magoada, mas não é lacrimejante; magoa porque diz agressivamente como vivemos mal na cidade e, entretanto, podemos agradecer a sua violência, porque é a de uma voz que não desarma perante o que nos agride, não consente a idealização destinada a esconder a dor imposta.


(*) Armando Silva Carvalho, Lisboas, Quetzal, Lisboa, 2000.


«Avante!» Nº 1374 - 30.Março.2000