Herman: parabéns?



A apresentação da festa de anos de Herman José em directo na SIC parece configurar um passo na trajectória portuguesa da televisão.

Ao longo da sua carreira, Herman teve uma elaborada gestão entre a sua figura pessoal e a sua imagem televisiva. É talvez o «ser televisivo» mais completo do panorama nacional.
Herman deve a proeminência ao talento e criatividade do seu trabalho para os ecrans, à criação de sucessivas figuras e caricaturas entre as quais contudo se impõe uma: a de si próprio. Em todos os programas interpreta, satiriza, inventa, mas sobretudo – está. Note-se como, penso que sem excepção, sempre introduz uma presença natural, sem maquilhagem, figurinos ou qualquer elaboração histriónica, uma imagem de si próprio tal como é e que por vezes acaba mesmo a constituir o eixo em torno do qual roda tudo o resto.


Duas figuras

A tudo isto acrescenta-se a complementaridade da exposição pública noutros suportes. A casa de Herman, os fatos de Herman, os carros de Herman, as férias de Herman, os jantares de Herman, tudo é regularmente objecto da fotografia, da reportagem, da entrevista não apenas da imprensa especializada (embora sobretudo e cuidadosamente dela), mas de uma panóplia informativa mais vasta e que frequentemente inclui o terreno difuso do fait divers do noticiário dito sério da televisão ou da imprensa.
Herman José já foi fotografado aparentemente em todas as circunstâncias, já foi entrevistado sobre tudo, os portugueses em geral podem com relativa facilidade estar convictos que o conhecem como se à sua família pertencesse – ou até melhor! Sabem o seu dia de anos, os seus pratos preferidos, conhecem-lhe fatos e adereços, já o viram em diversos dos seus carros, observaram-no em festas, praias, casinos, palcos, casas particulares, anúncios, na qualidade de centro de acontecimentos ou de factor de valorização de outros que sem ele seriam banais.
Contudo, em toda este quotidiano aparentemente de total transparência, não deixa de se ter consciência de uma cuidada e elaborada encenação. De Serafim Saudade a tantas outras, Herman construiu dezenas de personagens mediante uma capacidade criadora que passa pela definição de características, de traços psicológicos e físicos, de tiques de linguagem ou de gestualidade, de aparências fruto de maquilhagem ou guarda-roupa: mas tudo isto requer um padrão, um elemento fixo que torna diferente o resto. E esse padrão é a personalidade mais solidamente, mais elaborada e permanentemente construída e cuidada: a do próprio Herman José.
A exposição de Herman enquanto tal, de Herman trabalhando, de Herman convivendo, de Herman nadando ou apanhando banhos de sol, jantando ou conversando acaba assim a constitui um indispensável factor de divulgação de um personagem que torna diferentes as outras, concedendo-lhes simultaneamente uma unidade e uma imagem de marca. Quando é ele próprio, Herman assume a pluralidade das suas imagens e reforça a mais valia da diferença, até na medida em que insinua e afirma a capacidade de se desmultiplicar até a um aparente infinito.


Um microcosmos

Por outro lado, Herman define-se como o instável centro de uma igualmente instável, mas constante, constelação humana. É uma espécie de microcosmos de elementos e movimentos variáveis no qual pontifica, mas que se torna interessante por si próprio, pela sua variação, pelo que acrescenta à personagem central dentro e fora do palco/ecran. Há Herman, mas há igualmente uma «tribo Herman» que partilha a exposição e o convívio público. A ubiquidade de Herman manifesta-se igualmente nos membros da «tribo» que possuem também uma personalidade televisiva (ou várias, conforme os casos) tanto quanto uma personalidade própria, deles, sem maquilhagem, a de «todos os dias», a «normal», exposta nas fotos de festas, jantares, férias ou ralis-paper, quase sempre enquadradas total ou parcialmente em actividades «tribais».
Todo este processo insinua um paradoxo do actor bem próximo de Diderot. Herman é mais actor quando actua, quando é outro no palco/ecran ou quando é exposto em fotos, reportagens e entrevistas no que aparentemente é ele próprio? Qual é a personagem mais cuidada e construída? Que efectiva relação de dependência existe entre todas elas?
Aparentemente, até há uma semana, parecia que, no fundo, não existiam apenas dois planos em tudo isto, mas sim três. Os dois que se descreveram, mas, plausivelmente, um terceiro: o fria e deliberadamente reservado, o que, com maior ou menor calculismo e elaboração geria os outros dois e a sua complementaridade, o que se admitia ser o terreno efectivo da inteligência, da elaboração cultural, do talento, da efectiva elaboração criadora tanto quanto o de reais e íntimos afectos e gostos, de descanso serenamente pessoal, de solidões partilhadas e escolhidas.
A exuberância exibicionista de Herman impunha que se imaginasse a existência desta retaguarda defendida, um recanto camuflado por tanto ecran e tanta fotografia, mas onde afinal residiria o espaço secreto da dimensão humana, inteligente e afectuosa da dupla igualmente exposta do Herman actuando como actor e do Herman actuando como Herman. Aliás, se para o grande público esta duplicidade constitui o factor essencial de atracção da figura, a suspeita, a crença deste espaço acabava a constituir o segredo da admiração algo perplexa do observador mais elaborado e exigente, a cobertura para a aceitação mais ou menos complacente de um histrionismo que frequentemente ultrapassa o aceitável.


A derrapagem

Mas, aparentemente, houve uma derrapagem. O que parecia ser um edifício mantido com algum cuidado e determinação, teve, no mínimo, um abalo.

As festas de anos de Herman situavam-se no campo da «personagem Herman indivíduo», não na do «Herman televisão». Herman era o actor que também fazia anos e oferecia a revelação da intimidade dos seus aniversários em sacrifício à imagem da sua aparente normalidade enquanto pessoa de todos os dias. Havia tantas máquinas fotográficas quanto bavaroises de ananás, tantas câmaras de televisão quantas garrafas de champanhe francês, mas estávamos no plano de uma pseudo-intimidade revelada e não da encenação integralmente assumida. Já se disse, a reportagem do aniversário era complementar da prestação televisiva, destinava-se a sustentar dois planos de exposição pública, mas por isso mesmo era diferentes. Elaboradamente diferente, o que insinuava ainda a existência de um terceiro plano definindo e gerindo tais diferenças.

A cedência total ao voyeurismo que constituiu a festa-programa assinala a perda de lucidez face a um eficaz mecanismo de presença pública. Como Warren Beaty desabafa face à Madonna de «Na Cama com Madonna», «ela já perdeu a noção da diferença entre ela e a personagem».

A pergunta mais inquietante que se coloca é se o problema, de esgotamento ou de derrapagem, é de Herman José, ou se apenas tivemos o primeiro episódio da «televisão real» que se insinua como um big brother inquietantemente próximo, tornando normal o rasgar de todos os limites da livre da intimidade de cada um. — Ruben de Carvalho


«Avante!» Nº 1374 - 30.Março.2000