Mil vezes mais


No último «Expresso», o jornalista Fernando Madrinha explicava-nos caridosamente que «Lisboa ficou dois dias em estado de sítio mas resistiu sem danos de maior» . E logo detalhava que a capital «sobreviveu às sirenes da polícia, aos poderosos Audi a cem à hora, às greves oportunistas e às manifestações parasitárias que - é da praxe ! - uma cimeira europeia que se preze sempre há-de trazer consigo».
Generosos e benévolos, deixemos de lado tudo o que se esconde por detrás deste truque mesquinho de misturar greves e manifestações com sirenes de polícia e Audis a cem à hora.
Tolerantes com a ignorância, deixemos também de lado o piedoso esclarecimento de que não é assim tanto da praxe que as Cimeiras da União Europeia se defrontem com manifestações com a singular dimensão e força da que se realizou em Lisboa há oito dias.
Educados e civilizados, deixemos ainda de lado a observação de que o jornalista em causa, no quadro de uma melhor gestão dos adjectivos, teria sido justo e pertinente se - aí sim - tivesse tido a coragem de reservar o labéu de «oportunistas» e «parasitárias» para as enésimas promessas de criação de milhões de empregos feitas face a uma Europa que, como ele diz, «tem muitos milhões de desempregados e outros tantos milhões de pobres.
Sim, deixemos tudo isso de lado e antes registemos secamente que deve ter sido na base destas rancorosas qualificações sobre as greves e as manifestações que, na mesma edição, e tirando a generosidade de conceder a Carvalho da Silva um «alto» na rubrica «Altos & Baixos», o «Expresso» conseguia não trazer mais uma linha (ou uma foto) sobre a manifestação de dia 25, nem sequer na página onde passa em revista a semana finda.
Sim, deixemos de lado tudo aquilo e retenhamos sobretudo que, para sua suprema vergonha, este conceituado jornalista do «Expresso» só vê oportunismo e parasitismo quando uma impressionante manifestação dos trabalhadores levanta em Portugal a bandeira das suas aspirações e da sua condenação de uma política profundamente errada e injusta e confronta os administradores-delegados da União Europeia com a funda exigência de outra política.
E assim se desenha uma inapagável fronteira entre quem assim pensa e escreve e quem, como os comunistas portugueses, vê nas lutas em curso dos trabalhadores e na manifestação de dia 25 mil vezes mais verdade, mil vezes mais humanidade, mil vezes mais dignidade, mil vezes mais grandeza cívica, mil vezes mais afirmação e vitalidade da democracia e mil vezes mais motivos de esperança do que em toda a choldra politiqueira e em todo o maremoto de vacuidade e inutilidade que, largamente "amadrinhada" pelos «media», vai repugnantemente ensopando a vida política nacional. — Vítor Dias


«Avante!» Nº 1374 - 30.Março.2000