A Cimeira de uns quantos



"Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o numero de almas que é preciso vender ao Diabo, o numero de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um grangeeiro – seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis." Quando em 1846 Almeida Garrett escreveu aquelas palavras em Viagens na Minha Terra estaria longe de imaginar a actualidade que elas ganhariam ao ler-se uma pequena noticia divulgada por um matutino na passada semana. Destinada a divulgar a lista das dez maiores fortunas na Grã-Bretanha, a noticia confirmava que entre os que haviam alcançado tão edificante objectivo se encontra o patrão da Adecco, número um mundial do trabalho temporário, Philipe Foriel-Destezet de seu nome e graça.
Não narram as noticias mais recentes se tão bafejada criatura e digníssimo cidadão europeu se deslocou em pessoa a Lisboa para assistir à Cimeira da União Europeia sobre o emprego ou se depositou em mãos de outros a representação dos seus elevados interesses. O que tem por certo é que directa ou por interpostas pessoas a Cimeira não lhe gorou expectativas nem lhe trouxe razões para perda de sono. Para ele e para os que demais constróem sobre a precariedade, o trabalho sem direitos e a exploração de milhões de trabalhadores os seus impérios de riqueza e opulência a Cimeira não desapontou.
Em nome de uma alegada rivalização em matéria económica com o capitalismo americano a Cimeira adoptou no fundamental aquele conjunto de medidas e decisões, que no sentido da mais pura liberalização, asseguram o prosseguimento de um caminho marcado pela flexibilização das relações de trabalho, apresentadas como condição para dar à economia europeia aquele toque de competitividade e modernidade, conseguida à custa dos trabalhadores, que alegadamente lhe falta.
Gestores diligentes do capitalismo, Guterres, Blair, Aznar e seus pares bem podem sentir-se no papel do dever cumprido. Pelo meio de umas referências à construção da sociedade de informação e a uns repetidos apelos a novas promessas de pleno emprego para daqui a uns anos, a Cimeira assegura para já as medidas com vista à desregulação e liberalização da economia. Quanto à coesão social, ao combate à exclusão e à promoção do trabalho com direitos, logo se vê. Desde já adiadas para uma próxima ocasião, à mistura com uns patéticos apelos à compreensão e boa vontade do grande capital.
Pelo que o tal Philipe patrão da Adecco, e outros distintos cidadãos que lhe equivalam, pode tranquilamente aspirar a manter a sua cimeira posição na lista dos mais ricos da Europa. —
Jorge Cordeiro


«Avante!» Nº 1374 - 30.Março.2000