O que disse Godard
«Godard contra a TV» foi um telefilme transmitido uma
destas madrugadas pela SIC. Na verdade, o título original era
«Godard à la télé», mas a SIC gosta de que tudo seja o mais
espectacular possível, mesmo quando transmitido a desoras, e
há-de ter sido por isso que foi escolhido aquele título
português. Além de que, é verdade, o conteúdo do
documentário o justificava. Porque Jean Luc Godard é um dos
realizadores franceses mais importantes deste século, senti-me
obrigado a ver «Godard contra a TV», embora sempre tenham sido
mitigadas as minhas simpatias pelo cineasta. O telefilme não me
pareceu grande coisa, apesar de uma inegável originalidade de
construção, mas o certo é que não perdi o meu tempo.
Como se adivinhará, do binómio que ali estava enunciado, o que
mais me interessava era o segundo termo, a TV, embora perante a
visão de Godard. Inicialmente, estava mesmo convencido de que o
título português seria abusivo e de que o realizador não teria
sido assim tão frontalmente contra a TV. Estava enganado, e não
foi preciso ver o documentário até ao fim para o perceber.
Contudo, muito do que estava ali era irremediavelmente datado, as
décadas entretanto decorridas tinham mudado algumas coisas e
desactualizado objecções. Não, porém, as de fundo, algumas se
não todas. Retenho duas: «Em relação à TV, às vezes dá-me
a impressão de que estou num país ocupado» e «A televisão é
como uma torneira aberta que pode deitar veneno».
A estória da torneira
A primeira das
frases citadas denuncia a distância entre o país que «passa»
na TV e o país concreto, a omissão ou a subalternização até
ao apagamento de aspectos essenciais da realidade. Por haver uma
censura formal na França dos anos 60? De modo nenhum, ora essa.
Por haver um estado dominado pelos partidos representantes das
classes mais comodamente instaladas? Sem dúvida. A censura «dos
coronéis», sejam militares ou não, é uma brutalidade que dá
imenso nas vistas; a omissão sistemática de certas
informações e notícias, feita por critérios «apenas
jornalísticos» é perfeitamente democrática e tem a preciosa
vantagem de permitir a sua substituição pela notícia de
avulsos crimes violentos ou de casamentos de princesas que, isso
sim, não vicia a linha editorial e vende muito papel.
Quanto à imagem da torneira, ilustra perfeitamente a capacidade
da TV para intoxicar um país com um caudal venenoso que o inuda
e penetra em todos os cantos. Por outro lado, é uma boa
contribuição para esclarecer o que é isso de «serviço
público» que parece revestir-se de um carácter tão misterioso
que são muitas as personalidades distintíssimas que vêm aos
media garantir que não fazem, nem podem fazer, a menor ideia do
que se trata. É uma atitude que me lembra uma outra rábula
muito praticada em certos círculos intelectuais ou similares,
mas também muito propensos a ficarem incomodados perante algumas
realidades. Alegam que isso da verdade é qualquer coisa que
ninguém sabe o que é, recordam que desde pelo menos o século
XIX está provado não haver verdades absolutas, e por isso o que
há a fazer é não discutir coisas complicadas. Na esteira deles
e um pouco ao abrigo do seu patrocínio, vêm depois outros
repetir que ninguém sabe o que é a verdade, pelo que se arrogam
o direito de mentir em plena paz de consciência.
Voltemos porém ao «serviço público», pois é disso que
vínhamos falando. A estória da torneira permite perceber o que
há-de ser um serviço público digamos que mínimo: nunca se
parecer com a tal torneira que despeja veneno para o país
inteiro. E é claro que pelo menos neste caso não é apenas
veneno a droga que mata, mas também a droga que não mata mas
emparvece ou, dito de modo menos rude, que retira de tal modo ao
cidadão o entendimento das coisas e o sentido do que é
importante que ele se torna incapaz de se defender e à
comunidade em que se inclui.
Estas, pelo menos estas, foram positivas chamadas de atenção
decorrentes do que Gorard foi dizendo ao longo do telefilme. Não
foi muito. Mas sendo a TV o que é, já não foi mau. E, se se
quiser, o que é improvável, pode ser tido como reforço ao que
outros com muito menos currículo e prestígio vêm inutilmente
repetindo. Correia da Fonseca