...Eis
o Gorbachov de hoje a chamar mentiroso ao Gorbachov de então e
vice versa
O
embusteiro
Por José Casanova
Contratado pelo «Público», e não sei se com patrocínio de alguma marca de pizza, Gorbatchov deslocou-se a Lisboa onde procederá a várias actuações.
Búfalo Bill em fim de carreira, Professor Immanuel Rath no
espectáculo final do «Anjo Azul»... muitos são os exemplos de
decrépita exibição da condição humana que esta deslocação
traz à memória de quem tem memória. Anunciado com fanfarras
diárias pelo jornal contratante, o espectáculo de Gorbachov foi
antecedido da publicação de uma entrevista na edição do
«Público» do passado Domingo. O incontornável José Milhazes
e a previsível «enviada» Alexandra Prado Coelho entrevistaram
o actor no seu habitat natural: a Sede da Fundação Gorbachov,
em Moscovo. Sobre o que uns perguntaram e o que o outro respondeu
há que dizer que é tudo velho e repetido mesmo quando o
entrevistado não diz o que, sobre o mesmo tema, disse noutras
entrevistas. De facto, Gorbachov segue o transparente método de
dizer em cada momento o que em cada momento lhe interessa dizer.
Ficamos a saber, no entanto e mais uma vez, que o perestroiko
personagem «não desiste e está de regresso à política
activa» para o que «prepara um novo partido, de matriz
social-democrata». Satisfeito com o que fez - «diz sem hesitar
que voltaria a percorrer o mesmo caminho, mas com mais cuidados
tácticos» e que, hoje, os seus «objectivos seriam os mesmos: a
liberdade, a democracia, a abertura» ou seja, o regresso ao
capitalismo segundo o linguajar do seu «novo pensamento» -
conta estórias sobre as «transformações » iniciadas em 1985
e sobre os maravilhosos resultados obtidos: «A sociedade mudou.
As pessoas dependem cada vez menos do Estado e mais de si
próprias. Surgiram na mentalidade dos russos traços novos, como
a iniciativa pessoal, apareceram os empresários nacionais,
formou-se a infraestrutura da economia de mercado», isto é, o
capitalismo vai de vento em popa. É claro que nem tudo são
rosas, adverte, «setenta por cento das pessoas estão no limiar
da pobreza» mas «é assim que o processo avança», além de
que ele faz parte dos restantes 30%... Acresce que, segundo a
lastimável criatura, a salvação da Rússia depende da «Europa
e dos Estados Unidos, do espírito de abertura da parte do
Ocidente» e como «espírito de abertura» é coisa que não
falta aos donos do Mundo, está a Rússia salva.
Aos que lhe chamam «grande dissimulador», o embusteiro
responde: «Nunca escondi, mesmo no início da perestroika, que
tinha a ilusão de que era possível melhorar o socialismo,
dar-lhe um segundo alento, através da união com a democracia.
Depois vi que o sistema era irreformável. Que resistia. Era
preciso ou não fazer nada ou mudar tudo radicalmente. E fiz isso
tudo abertamente, nos plenários, falando perante o povo». Eis o
Gorbachov de hoje a chamar mentiroso ao Gorbachov de então e
vice versa, misturando mentiras com verdades de forma a melhor
fazer passar a mentira; ei-lo fingindo que se esqueceu de que, em
1985, foi eleito secretário geral do partido prometendo um
revolucionário «regresso a Lénine» e que, em 1988, no
Plenário do CC do PCUS proclamava e jurava que «A perestroika
não é menos socialismo mas mais socialismo», ao mesmo
tempo que liquidava a planificação socialista e a substituía
por nada, ou seja, pelo caos económico; ei-lo fingindo
desconhecer que, nesse entretanto, os mais fieis divulgadores do
seu «novo pensamento» levavam a cabo a gorbatchoviana tarefa de
«demonstrar» que tudo o que de negativo ocorrera na URSS se
devia não a «distorções da democracia socialista» mas às
«perversidades intrínsecas da ideologia marxista-leninista»;
ei-lo contando mal contada a estória do chamado «golpe de
Moscovo» e escondendo o papel indigno que nele desempenhou;
ei-lo, enfim, fingindo não se lembrar que foi invocando
constantemente o nome e o pensamento de Lénine que, em serviço
combinado com o imperialismo, procedeu à destruição do partido
de Lénine, à liquidação da primeira tentativa na História da
Humanidade de construção de uma sociedade nova, à abertura das
portas para o regresso do capitalismo explorador e opressor e,
com tudo isso, ao apoio à edificação de uma nova ordem
imperialista de cariz totalitário.
Sem esquecer as causas profundas que estão na origem da derrota
do socialismo, vale a pena ter em conta, também, as suas causas
próximas quanto mais não seja porque o principal
protagonista destas últimas se encontra em Portugal e, sem
vergonha nem dignidade, exibe com desfaçatez a sua condição de
traidor.