Nos 500 anos de um «descobrimento»
O «achamento» de uma nova economia?

Por Sérgio Ribeiro



No semestre português da presidência da UE, o ambiente de «grande final» para a «cimeira do emprego», apoteose guterriana na raia da euforia que se pretendia contagiante, leva a classificar a reunião de embuste. Não só pelo ambiente, também não só pelo que foi a reunião, talvez sobretudo pela preparação e pelos resultados anunciados.


Sobre a reunião, tirando problemas provocados no trânsito lisboeta e a questão da fotografia ser de família ou de grupo («g’anda vitória» da diplomacia portuguesa!...), não há muito a dizer.
Fez-se. A reunião. E a fotografia.
Já a preparação, o documento elaborado para a «cimeira», tem que se lhe diga. Apresentado como «papel» de grande densidade teórica, na sua promoção não faltou o episódio extra-científico do contrato com a responsável-mor, a ex-ministra do trabalho Maria João Rodrigues, denunciado como escandaloso, Diário da República e verbas em apoio.
O «curriculum» académico e científico da Prof. Doutora MJR justificava expectativa. O mesmo não se dirá do seu CV político algo inconsistente, pois passa do mais radical (e inconsequente) anti-capitalismo para a social-democracia mais conforme com o capitalismo.
Não tendo conseguido educar a classe operária nos idos anos 74-75, a vocação da jovem «revolucionária» veio a consagrar-se na brilhante carreira docente e, decerto por não ter perdido a vontade de educar a classe operária, agora procura fazê-lo através de coisas como a «empregabilidade» e a «adaptabilidade», dois dos vectores dos planos «europeus» de emprego que o documento apadrinha e mais ainda porque, pelo menos em relação à «empregabilidade», a paternidade (ou maternidade via MJR) é portuguesmente reivindicada.
Assim se diz – educando a classe operária... –, aos desempregados, que só estão desempregados por responsabilidade sua, a responsabilidade de não terem adquirido a formação bastante para «empregáveis» serem, e se diz, aos precariamente empregados, que podem evitar passar de precários a desempregados ou ainda maior precários se se adaptarem, apenas a sua irresponsabilidade os podendo levar, por inadaptação, a situações sociais mais degradadas, quiçá à exclusão social.


Perspectivas


Define-se, com pompa, o objectivo estratégico de tornar a «economia europeia» a mais competitiva de todas, o que leva à revelação de outra coisa que não cria um neologismo – como o da «empregabilidade» – mas que é servida em idioma mais «universal», o benchmarking, que muito ajudou à euforia com que o 1º ministro apresentou os resultados da «cimeira», como sendo sua conquista passar a haver formas de comparar os contributos dos «parceiros» para o objectivo estratégico.
Tudo – a estratégia e o que a serve – assentaria no que o documento enfatiza como «conhecimento», neste se baseando a «nova economia», chegando a afirmar-se que a oferta (de trabalho qualificado) criará a procura, no respeito pela clássica «lei dos mercados» de Say, o que, como é evidente, não será comprovado pelos licenciados portugueses que procuram emprego pois a sua oferta qualificada só consegue encontrar no mercado – quando consegue – a procura de trabalhadores traduzida em oferta de empregos pouco ou nada qualificados.
Esta pedra angular do documento exige observações vindas de uma outra perspectiva.
Primeiro, toda a economia assenta no trabalho, e este, ao concretizar-se em emprego da força de trabalho, evolui como força produtiva que sempre assentou em conhecimento. Muito se fala da inovação mas muito se esquece que ela se deve ao conhecimento e sua aplicação, ao trabalho vivo que incorpora. E mais ainda se esquece que, se há hoje conhecimentos novos a adquirir, não se pode ignorar que também é conhecimento a força de homens e mulheres que, há milénios, transforma o meio de que são parte, cavando a terra, moldando a madeira, temperando o aço, soprando o vidro. Seria injusto (se a palavra é justa...) dizer que, a partir de agora, é preciso promover o conhecimento (da informática e de derivados em rede) como se todo o outro emprego da força de trabalho não fosse aplicação de conhecimento.
Depois, o conhecimento para a «nova economia» não é neutro socialmente. Não é indiferente que, por exemplo, as infraestruturas das «auto-estradas da informação» sejam usadas para que capitais se desloquem libertinamente em busca de acumulação, independentemente dos efeitos sociais, ou para fazer com que essa conquista de todos seja aplicada em proveito de todos, a partir da participação na definição e concretização de objectivos sociais.
Por último, a «cimeira» era sobre emprego. E este é meio e fim. Ora o documento fala do emprego como meio para se atingir um objectivo estratégico, e não fala do emprego com fim, materializando um direito, o direito ao trabalho. É verdade que refere o pleno emprego, e disso se fez demagogia. Mas um pleno emprego «adaptado à sociedade emergente» o que, sem se saber muito bem o que queira dizer, quer pelo menos dizer que deve ser o direito a adaptar-se à sociedade que emerge e não a sociedade que emerge a adaptar-se à concretização do direito.


Desemprego e emprego

Há mais de década e meia, e em não sei quantas «cimeiras», o desemprego é tema central. Lembra-se que, no começo dos anos 90, uma «cimeira» adoptou propostas de um «livro branco» que projectavam a criação de 15 milhões de postos de trabalho e a redução da taxa de desemprego para metade. Hoje, não se avançaram números, para evitar que possam vir a ser posteriormente invocados como aqui e agora se faz provando incumprimento, mas não falta o cor de rosa não quantificado.
No entanto, há números i) que revelam a inconsistência técnica-científica e ii) outros fazem muito falta no diagnóstico que deveria fundamentar as «receitas».
Por um lado, custou ouvir o 1º ministro dizer, naquele seu tom convicto para convencer, que se vai fazer crescer o emprego, partindo duma taxa de emprego de 60 por cento em confronto com a de 75 por cento dos EUA e referindo-as à população activa, o que é erro inaceitável, pior que o célebre do PIB. As taxas de actividade e de emprego referem-se à população total e à população em idade activa, o que é bem diferente de população activa, conceito estatístico que apenas soma população no «mercado do trabalho», sendo parcelas as populações empregada e desempregada (disponível e à procura de emprego). Pegando na palavra do eng. Guterres – e de comentadores, como a inclassificável Teresa de Sousa –, a taxa de emprego de 60 por cento, se em proporção da população activa, corresponderia a taxa de desemprego de 40 por cento!
Mas deixemo-nos de «preciosismos», e afirmemos a gravidade do silêncio sobre projecções demográficas que prevêem diminuição efectiva da população em idade activa em 5/10 anos, e de não se fazer referência à já escassez de força de trabalho em alguns países e regiões, em função da evolução demográfica. Pode, pois, dizer-se que se escondem auxiliares de diagnóstico para se fazer brilharete com adivinhação do que se sabe que vai acontecer e condicionará o futuro. Positivo em termos de desemprego, diga-se.
Assim não será em termos de emprego, e de sua qualidade. Que, na perspectiva adoptada, se quer ainda mais precário, com a força de trabalho cada vez mais mercadoria. Como é nos EUA, vangloriados como modelo a partir de médias que escamoteiam as desigualdades, o trabalho sem direitos, a «miséria com emprego».
«Modelo» recusado pela manifestação que, a contragosto, teve de ser noticiada – a fugir – como impressionante. E foi! Essa é a nossa força.


«Avante!» Nº 1375 - 6.Abril.2000