Uma confissão avulsa de «pecados»!

Por Jorge Messias


 

Que será «pecar», numa sociedade onde se confundem valores e protagonismos que se afirmam contrários? Quem poderá «perdoar» delitos próprios e alheios: os crimes de sangue, a alienação do homem, o peculato, a intriga política, a guerra, as anónimas alianças?

João Paulo II e a sua corte julgam-se com capacidade para responder de cátedra a estas questões. O Papa surge a sopesar os pecados dos crentes e gradua-os segundo uma ordem que só ele conhece. Uns, serão para confessar, outros para esquecer. Alguns para assinalar, no passado; outros para omitir, no presente. João Paulo II «confessa-se a Deus» mas não perde tempo com futilidades: perdido entre a multidão de cardeais, absolve os príncipes da igreja e absolve-se a si próprio. Dirige-se à divindade e põe os homens à margem.
Nada disto parece passar-se nos tempos de hoje. Mas o facto é que acontece. Tal como com os albigenses, os albigenses, os templários, os tribunais eclesiásticos, com Galileu ou com Damião de Góis. Tal como com os padres guilhotinados durante o «Terror Branco» da Revolução Francesa, com os sacerdotes fuzilados na Comuna de Paris ou abandonados à exterminação pela fome, pela sede ou pela asfixia às portas de Auschwitz. Tal como com os apoios garantidos pelo Vaticano à ascensão do nazifascismo brutal ou com as redes monásticas que garantiram a fuga dos chefes e criminosos nazis. Tal como com a cortina de silêncio com que a Igreja protegeu a prática de assassínios em massa, nos fornos crematórios, nos «muros pretos», nas células de «estar em pé» ou nas barracas calafetadas onde dezenas de milhar de soldados soviéticos pereceram, lentamente, devorados pela fome, pela sede, pela peste e pelos parasitas. Depois de tudo isto um papa, herdeiro dos Bórgias, reclama agora poderes morais para perdoar e para absolver.
O Vaticano «perdoa» mas não muda. Põe de lado, como se nada acontecesse, os crimes que continua a cometer no século XXI. As conspirações políticas, as intrigas financeiras, os silêncios de conveniência, como no Burundi, a colocação ao serviço das tiranias e do grande capital dos seus cantados esforços de mediação e de paz, as alianças ocultas com o grande capital que cava os caboucos da miséria total.
Roma celebra o Jubileu do Ano 2000. Um superespectáculo como os dos tempos distantes. O Vaticano continua a vender bulas e perdões, como já o fazia na dourada Renascença. Instala fabulosos cenários litúrgicos , a exemplo das eras em que para Roma convergia o saque dos povos e dos impérios. Faz negócio com as multidões de peregrinos, com o artesanato religioso, com os transportes, com a assistência, com tudo quanto possa dar lucro, como outrora também em Santiago de Compostela, em Lurdes ou em Assis.
Certo é, porém, que a Roma do Jubileu 2000 tem outras dimensões e que os círios vão dando lugar aos telemóveis e aos «T-shirts». São diferentes os peregrinos de agora e aparentemente outros os poderes que os governam. A Cúria não se atreve a essa afirmação. Mas sabe que é preciso guardar recato, fazê-la pela calada, resguardar a própria imagem. O Vaticano compreende toda a importância que os cuidados mediáticos actualmente devem ter. Tudo isto, embora nos corredores da Santa Sé se exulte: «Roma não está só em Roma» - dizem os cardeais - «Roma está em toda a parte!». Evidentemente, conversa só para familiares.
É nestes quadros que João Paulo II sobe ao púlpito para fazer um «mea culpa» que apenas os iniciados entendem. Reconhecimento dos crimes cometidos no passado ou auto-absolvição? «Metanóia» ou um necessário toque de cosmética? Prosápia irreprimível de conter ou simples manobra estratégica ?
Certo é que João Paulo II atribui aos papas um poder quase-divino. E o «mea culpa» com que acena ao mundo nada tem de humildade ou de arrependimento. É antes, uma afirmação de arrogante impunidade. A Igreja cometeu crimes, «pecou», mas continua a ser a igreja una, santa e católica. A Cátedra de S. Pedro é a tal ponto omnipotente que se atribui poderes, num mundo que lhe vira as costas, para decretar, unilateralmente, que os crimes cometidos pelos bispos, pelos cardeais e esbirros católicos em todo o mundo sejam perdoados.
A igreja de João Paulo II ascendeu aos cumes do Olimpo. Sem sombra de dúvida que assim é. As estradas do Jubileu estão calcetadas a oiro. Quem poderá ostentar maiores riquezas? Quem poderá invocar mais decisivos aliados? Certo, porém, é que todo este poderio acumulado esconde uma grande fragilidade. Na vertente oposta do monte sagrado abre-se um precipício onde vagueiam lobos vorazes. A religiosidade e a fé não fazem estremecer as mãos implacáveis dos banqueiros. Aproxima-se a altura em que o Vaticano deixará de ser necessário. E o Vaticano bem sabe que o apetite do capitalismo é insaciável. O repasto final pertencerá a um só vencedor.


«Avante!» Nº 1375 - 6.Abril.2000