CRÓNICAS
DA IDADE MÍDIA
Censura
Por Ruben de Carvalho
No dia 3 de Março de 1983, data da morte do
cidadão belga Georges Remi, que todo o mundo conheceria pelo
pseudónimo de Hergé, o quotidiano francês Libération apresentou
uma edição que ficou na história da imprensa como exubrante
demonstração da índissolúvel ligação da cultura popular
urbana do século XX à vida da Humanidade das últimas décadas.
Ao longo das suas páginas desse dia, o Libé ilustrou todas
as peças, do noticiário internacional ao boletim
metereológico, dos acontecimentos da política quotidiana aos fait
divers parisienses exclusivamente com desenhos
retirados dos vinte e três álbuns de banda desenhada criados
por Hergé e tendo Tintim como figura central.
Com acontecimentos assim e muitos outros, a banda desenhada tem
vindo a adquirir uma respeitabilidade que lhe faltava, a aque se
acresce um interessante movimento editorial de estudos, amálises
e antologias.
Inclui-se neste último caso a edição do volume sobre o
«Cavaleiro Andante» da autoria de Leonardo de Sá e António
Dias de Deus dado à estampa em Novembro do ano passado1.
Julgo que o resultado terá ficado aquém do desejado pelos
autores e que os mais de 550 números do semanário editado pelo
«Diário de Notícias» teriam permitido resultado mais denso e
completo, fosse na análise, fosse no levantamento iconográfico.
Seja como for, a somar-se aos já editados álbuns sobre o
«Mosquito» e a obras de maior fôlego 2, este
trabalho sistematiza uma série de conhecimentos até agora
dispersos e acrescenta outros relevantes.
Mas o que deu pretexto a estas linhas foi o casual cruzamento de
leitura do álbum sobre o «Cavaleiro Andante» e de um trabalho
mais antigo, datado de 1990, não seguramente o mais exaustivo
sobre Hergé, mas dos mais interessantes: Le Monde de Hergé,
de Benoît Peeters 3.
Peeters organiza a sua obra em função dos sucessivos álbuns de
Hergé, situando-nos no tempo, nas motivações e condicionantes,
esclarecendo aspectos de influência documental ou iconográfica
e nos períodos de vida pessoal do desenhador.
Lendo os textos com os quais Dias de Deus e Leonardo de Sá
acompanham a sua antologia, recorda-se a conhecida hostilidade do
responsável pelo «Cavaleiro», Adolfo Simões Muller, à
produção de BD norte-americana, dicotomia que constituiu aliás
um traço distintivo entre os contemporâneos «Mundo de
Aventuras» e «Cavaleiro «Andante».
Escritor para crianças e adolescentes a que é justo reconhecer
alguns méritos, Muller foi contudo uma peça importante da
produção «educativa» do Estado Novo, não apenas mediante a
sua produção própria em livro e como responsável de
publicações, mas noutras bem menos aceitáveis funções como a
de membro da comissão censória que em 1950 elaborou umas
«Instruções Sobre Literatura Infantil» cujo conteúdo
facilmente se prevê.
Este lamentável pendor censório de Simões Muller fez-se sentir
doutras formas, além, é claro, do critério de selecção das
séries incluídas no «Cavaleiro» (largamente influenciado pela
produção italiana ligada ao Vaticano e por encomendas
portugueses na linha do patrioteirismo salazarista, embora por
vezes de real qualidade gráfica e narrativa). Dias de Deus e
Leonardo Sá recordam que a sanha do director do «Cavaleiro» o
levou a inqualificavelmente truncar o final da série «Kevin the
Bold» («Pela Cruz e pela Espada», em português...) do
americano Kreigh Collins (eventualmente pela violência das cenas
ou pelo evidente erotismo da figura que dera início à série, a
capitosa «Mitzi McCoy...), tanto quanto o inconfundível traço
de Alex Raymond e as histórias de Dashiell Hammet tinham sofrido
no «Diabrete» idênticos tratos de polé de Muller no «Agente
Secreto X9».
O recordar destas desventuras trouxe à memória um episódio
narrado por Benoit Peeters sobre um dos mais famosos álbuns de
Tintim, traduzindo em português por «Explorando a Lua». Os que
a leram, recordar-se-ão que parte da intriga se passa em torno
da tentativa de uma «potência estrangeira» para se apoderar do
foguetão inventado por Tournesol, nesse sentido sendo aliciado
um dos técnicos envolvidos, um engenheiro com um conveniente
apelido de «Wolf»... Acossado por dívidas de jogo, Wolf, uma
das poucas figuras dramáticas das personagens de Hergé, vê-se
forçado introduzir no foguetão um assaltante, num conflito de
consciência que o leva, em pleno espaço, a abandonar a nave no
regresso à terra para tentar poupar oxigénio e salvar os
restantes tripulantes.
Wolf deixa uma mensagem e sobre ela Peeters cita as confidências
que Hergé fez a Numa Sadoul 4:
«Na sua mensagem de adeus, [Wolf] escreve nomeadamente: "Quanto
a mim, talvez um milagre me permita também escapar... Isto
foi fruto da intervenção de personagens bem pensantes,
perturbados pelo facto de que se tratava de um
"suicídio". De forma alguma, repliquei eu,
é um sacrifício! O soldado que faz ir uma ponte pelos ares e
vai com ela, a Igreja recusa-lhe a entrada no Paraíso? Mas
era preciso sair deste impasse e acabei por ceder e escrever este
disparate: Talvez um milagre me permita escapar. (...)
Não havia nenhum milagre possível: Wolf estava condenado sem
apelo e ele sabia-o melhor do que ninguém.»
E a memória é implacável: até 25 de Abril de 1974, na
imprensa portuguesa também ninguém se suicidava. Os coroneis da
Censura velavam para que esse alguém «aparecesse morto».
Como não haviam de estar condenados quantos nem no sacrifício
reconhecem ao homem a liberdade?
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1) Edições Época de
Ouro Editorial Notícias. Lisboa, 1999
2) FERRO, João Pedro. História da Banda Desenhada
Infantil Portuguesa. Editorial Preseça. Lisboa, 1987; DIAS
DE DEUS, António. Os comics em Portugal.
Cadernos da BEDETECA. Edições Cotovia. Lisboa, 1997
3) Bibliotheque de Moulinsart. Casterman. Paris, 1990
4) SADOUL, Numa. Entretiens avec Hergé, édition
definitive. Bibliotheque de Moulinsart. Casterman. Paris,
1989