A TALHE DE FOICE
Enigma



O Papa «é o socialista mais importante do mundo» porque, «por onde quer que passa, fala sempre dos pobres e da solidariedade». A asserção, proferida há dias por Gorbatchov num encontro com estudantes em Roma, trouxe-me à memória uma história sobre como era contada a vida de Cristo às crianças nos Açores. O episódio versava a morte de Lázaro, o desespero das irmãs de Lázaro e as tentativas para encontrar Cristo em tempo útil de acudir à desgraça, o que, revelando-se impossível, as forçou a enterrar o corpo que já fedia. Cristo chegou dias depois, com a canalha toda atrás, e foi levado ao local onde Lázaro jazia; num gesto largo fez afastar as pedras que protegiam o corpo, e com voz sonante ordenou: «Lázaro, come back daí para fora».
O que é que tudo isto tem a ver com as deambulações ecuménicas do homem que há dez anos enterrou o PCUS e acaba agora de criar um partido social-democrata? Ora aí está um desafio aos leitores, tipo «descubra as diferenças», passatempo mais ameno do que acompanhar a saga indiscritível da corrida de lebres entre Basílio Horta e Ferreira do Amaral. A título de ajuda, aí ficam umas achegas.
Gorbatchov - que anteontem perorou em Lisboa acolitado por Cavaco silva, António Barreto, Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares numa iniciativa promovida pelo «Público», e ontem abrilhantou com o antigo conselheiro norte-americano de Defesa Zbigniew Brzezinski uma seminário sobre «Identidade Europeia de Segurança e Defesa» - é um homem fascinado pelo poder da palavra, um optimista confesso e um crente nas virtualidades da mundialização. Qual camaleão, adapta-se facilmente ao meio em que se encontra, nas palavras e nos actos; em Roma, dada a proximidade do Vaticano, identificou-se com o Papa e com a necessidade de «encorajar os aspectos positivos» da mundialização; na Rússia, é Putin que o encanta porque ganhou à primeira volta e porque vai «acabar com o capitalismo selvagem» e levar a cabo uma política baseada na «fidelidade à liberdade, à economia de mercado e à Europa»; em Portugal, encontrou-se com governantes, empresários e comentadores políticos, ouviu sem corar Cavaco Silva dizer dele que tinha sido «o instrumento de Deus» nas grandes transformações do século, considerou que «ainda é cedo para avaliar os nossos erros e falhas», e lembrou que «a Rússia não é Portugal, em que atravessámos a fronteira e já estávamos a aterrar». A versatibilidade do verbo e das ideias deste homem só é comparável à da sua própria acção, que o leva de orador em fóruns políticos a apresentador de festivais da canção e promotor de pizzas ao serviço de multinacionais.
Com quem se identificará Gorbatchov quando corre o mundo cobrando cachets milionários pelas suas «lições»? Com o Cristo ou com o Lázaro da história açoreana? Um jazia morto e já fedia, outro ressuscitou-o com uma palavra mágica. Os milagres, como as lições, têm consequências imprevisíveis. «Come back daí para fora» é a chave deste enigma, algo fedorento, convenhamos, mas muito adequado ao admirável mundo novo que está a ser construído sob a batuta dos states. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1375 - 6.Abril.2000