Um ar que lhe deu
Foi preciso muito tempo para que os
distintos «observadores» da cena política nacional - «cena»
talvez seja a melhor palavra a atribuir àquilo que a maioria
deles vêem no que se passa dentro do País e fora dele -
concluíssem que o «estado de graça» do Governo de Guterres
tinha chegado ao fim. Alguns deles esqueceram já que lhe fizeram
durar a «graça» não só porque acreditaram, supomos, na
bondade do líder e nas pernas para andar que o PS mostrava, mas
também porque, alguns outros, preocupadíssimos com a falta de
credibilidade de uma «alternativa à direita», preferiam que a
política de direita, pelo menos, tivesse cadeiras onde se
sentar. E assim lá foram repintando os cenários cor de rosa que
adornam o fundo onde a acção se passa e dourando os gestos dos
actores, disfarçando-lhes as misérias e fornecendo-lhes de
bandeja as «deixas» que lhes não sobravam.
Durante muito tempo - que precioso foi para que esticasse tanto -
foram assegurando ao Governo a graça que lhe ia faltando.
Elogiaram o «diálogo», enalteceram as privatizações,
louvaram as habilidades na política externa. Nem mesmo lhes
faltou aquele arrepio que souberam fingir à beira das
eleições. Nem disfarçaram depois as alegrias de uma maioria
quase absoluta e para a qual terão eventualmente contribuído
fazendo crer a muitos que a rosa não tinha espinhos por aí
além.
Diminuíram protestos, disfarçaram manifestações, desprezaram
greves, calaram iniciativas incomodativas. Mostraram
abundantemente as peripécias e as farsas das divisões à
direita. Anunciaram, espremendo a doutrina liberal, e pela
milésima vez, o fim do comunismo, o desaparecimento da luta de
classes e, por decreto ou omissão, decidiram da invalidade de
uma alternativa de esquerda. Para eles, a «esquerda» estava no
PS - bem escondida, é certo - e nas ladainhas folclóricas do
«Bloco». Nada a temer, portanto. A «graça» podia continuar.
Foi preciso que - anunciado o fim do bodo europeu, com os juros a
subirem e a recessão a bater à porta - sentissem a mão negra e
rapinante do aumento do crédito e dos preços a entrar nos
bolsos de alguns deles para ouvirem o coro de protestos brandindo
a desgraça. O protesto, porém, era já ensurdecedor.
Ainda assim, um «observador», Eduardo Prado Coelho, admitindo
embora que a «graça» já lá vai, escrevia ontem no
«Público» que o Governo tem ainda «um enorme trunfo: por pior
que esteja a ser, nunca consegue ser pior do que as alternativas
que para ele existem».
Olhe que não, doutor. Leandro Martins