Se todos os juízes do Mundo... (*)
Por José Saramago
Ainda que todos os juízes do mundo fossem
homens justos, no sentido de serem, todos eles, sem excepção,
rigorosos aplicadores da lei, nem assim o mundo estaria vivendo
na santa paz da justiça. Os juízes formam-se e existem para
acatar e fazer acatar as leis, mas as leis não são justas só
por terem o nome de lei: dizer lei nem sempre foi o mesmo que
dizer justiça. Na história dos povos multiplicam-se os exemplos
desta verdade. Muito pior do que isto, porém, é quando num
tribunal, chamado a decidir sobre uma acção presuntamente
criminosa, se vão encontrar reunidas duas injustiças: a da lei
e a do juiz. Já não bastava a hipótese de que o juiz fosse
daqueles que facilmente tapam os ouvidos à voz da sua
consciência, no caso de ainda a terem, aplicando cientemente e
à letra, sem o menor gesto de protesto público, uma lei que já
sabiam ser injusta ou, pelo menos, desajustada em relação ao
caso em juízo. Nesta situação corrupta, isto é, reunidas no
mesmo foro as duas injustiças, quer prevenido o juiz de antemão
contra o acusado quer forjada a lei para abrir caminho à
condenação, ambos potenciarão alegremente as suas
mútuas perversões institucionais e morais, começando logo por
desprezar aquele sábio conselho da jurisprudência clássica que
determinava que uma dúvida fundamentada, quando a houvesse.
deveria favorecer o réu e não a pena. Há casos, contudo, em
que a dúvida não é legítima, nem sequer admissível à luz
clara da razão ou do simples senso comum, casos em que toda a
configuração do processo testemunha, pelo contrário, a favor
do acusado, e, não obstante, lei e juiz, mancomunados, negam,
não já a mera presunção de inocência mas a própria
evidência dela, e condenam sem culpa. Aconteceu isto no Brasil,
em 10 de Junho de 1997, quando o Tribunal de Justiça de Vitória
(Espírito Santo) condenou a 26 anos e 6 meses de prisão José
Rainha, um dos principais dirigentes do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), acusado de assassínio de
um polícia e de um fazendeiro. Ora, no dia do crime, 5 de Junho
de 1989, José Rainha encontrava-se, e fez disso prova bastante,
a 2000 km do local. O juiz desprezou a prova e os direitos da
defesa e, brutalmente, condenou. Se a Justiça, no Brasil,
tal como sucede no resto do mundo, é representada com os olhos
vendados, passámos, a partir de agora, a ter motivo para supor
que, se a infeliz está assim, é para que não possamos
aperceber-nos de que lhe arrancaram os olhos...
José Rainha, que, naturalmente, apelou da sentença, voltará ao mesmo Tribunal no próximo dia 13 de Dezembro para o julgamento do recurso. Não sendo crível que a justiça no Estado brasileiro de Espírito Santo tenha passado, nestes últimos dois anos, por um processo de regeneração moral e institucional, há razões para temer que a farsa judicial se venha a repetir. Há algum tempo, quando me manifestei publicamente a favor dos trabalhadores sem terra. o presidente do Brasil, sr. Fernando Henrique Cardoso, embora sem citar o meu nome, aconselhou-me a que me ocupasse dos assuntos do meu país e deixasse os do seu em paz. Não lhe faço a vontade. A mundialização, senhor presidente, quando nasce, é para todos. Por muito que lhe desagrade, o seu Brasil, os sem terra seus compatriotas e a justiça que os condena fazem parte do meu mundo. Suporte-me, ainda que lhe custe, E permita-me que lhe pergunte se conseguiu dormir todas estas noites em sossego depois de José Rainha ter sido condenado a 26 anos e 6 meses por um crime que não cometeu.
P. S. - Mesmo que à justiça não lhe tenham arrancado os olhos, sempre será preferível que não os traga tapados. Desta vez, os olhos da Justiça estavam onde e como devem de estar: abertos e no único lugar de onde realmente se pode ver, ou seja, o lugar da razão e do respeito pela verdade. A absolvição de José Rainha, depois da condenação absurda de que fora vítima, mostra-nos que não nos é permitido desanimar na batalha pela dignidade do ser humano. Perderíamos tudo, se a perdêssemos.
(*) José Saramago enviou ao -Avante!» este texto, escrito em Dezembro passado, quando se aguardava a sentença do recurso de José Rainha, acrescentando o post-scriptum que redigiu logo após conhecer a absolvição.