A imposição do
estado de emergência mereceu o repúdio da Igreja, da oposição
e da Assembleia de Direitos humanos
Guerra
da água
incendeia Bolívia
O aumento de 300 por cento no preço da água potável fez transbordar a taça do desespero popular num país que é um dos mais pobres do continente americano.
O governo do presidente Hugo Banzer - o ditador que dominou a
Bolívia entre 1971 a 1978 agora «convertido» à democracia -
não encontrou melhor resposta para a revolta popular do que a
implantação do estado de sítio por um período de 90 dias. A
medida, tomada no sábado, não pôs termo à greve geral que
desde o início da semana passada está a provocar o caos na
cidade de Cochabamba, no centro do país, nem acabou com o
bloqueio de estradas e caminhos por todo o país, mas levou já
à detenção de pelo menos 22 sindicalistas.
O epicentro da revolta situou-se em Cochabamba, onde no dia 3 a
população saiu à rua em protesto contra o aumento de 300 por
cento das tarifas da água, e exigindo ao governo a rescisão do
contrato com a administradora privada do sistema de água
potável. Em resposta a um apelo da Coordenadora de Defesa da
Água, cujos principais dinamizadores se mantém na
clandestinidade, a população aderiu a uma greve geral que
paralisou os transportes públicos, encerrou o comércio e os
postos de abastecimento de alimentos, bloqueou estradas e
principais pontos estratégicos da cidade com todos os meios ao
seu alcance, e acabou por se envolver em confrontos com a
polícia. No espaço de uma semana a revolta, considerada a mais
grave dos últimos anos, provocou a morte de seis pessoas e cerca
de meia centena de feridos.
A imposição do estado de emergência mereceu o repúdio da
Igreja, da oposição e da Assembleia de Direitos humanos da
Bolívia. O secretário-geral da Conferência Episcopal da
Bolívia (CEB), monsenhor Jesus Juarez disse que «a Igreja
lamenta que, uma vez mais, tenha sido imposto o estado de
emergência na agitada vida democrática» boliviana. O principal
partido da oposição, o Movimento Nacionalista Revolucionário
(MNR) pediu ao presidente Banzer a suspensão da sua decisão e
criticou-o por «não solucionar os problemas do país». A
Assembleia Permanente de Direitos Humanos considerou a
instauração do estado de emergência uma decisão
«inconstitucional», sublinhando que «a prepotência e o
abuso» são métodos menos indicados para o governo se
relacionar com a sociedade civil e demonstram que o executivo do
general Hugo Banzer «prefere assumir condutas idênticas às
adoptadas durante as ditaduras militares».
Crise generalizada
O aumento do preço da água, brutal, está longe de ser a única
causa da revolta boliviana. A braços com uma pobreza crónica
que afecta a maioria da população, a corrupção generalizada e
as guerras intestinas de disputa pelo poder entre a coligação
partidária que apoia Banzer, os bolivianos viram a crise
económica agravar-se ainda mais nos últimos meses com a subida
do preço dos combustíveis e das tarifas dos serviços básicos,
enquanto os seus salários, já de si miseráveis, se mantém
congelados. Ao mesmo tempo, o desemprego e o subemprego não
pára de aumentar, enquanto os anunciados programas de
«reactivação económica» não passam do plano das
intenções.
Esta situação explica que, em simultâneo com a explosão de
revolta popular, efectivos da polícia de La Paz, a capital do
país, bem como de outras cidades, se tenham amotinado em luta
por aumento de salários e melhores condições de trabalho. Na
capital, a insubordinação começou no Grupo Especial de
Segurança, estendendo-se depois ao II Regimento, ao corpo de
bombeiros, à polícia técnica judicial e aos polivalentes, uma
unidade de apoio ao cidadão. No sábado, após mais de 20 horas
de grande tensão face à iminência de um confronto armado entre
polícias e militares, o governo acabou por ceder aos amotinados
e concordou, entre outras coisas, num aumento de salários de 50
por cento (o salário médio dos não graduados ronda os 60
dólares por mês, enquanto o dos suboficiais não vai além dos
100 dólares), e pagamento de um subsídio de
alimentação e aquartelamento. O governo comprometeu-se ainda a
não aplicar represálias contra nenhum dos polícias que
participaram no protesto e assegurou um maior respeito dos seus
direitos por parte da hierarquia.
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Italianos
abandonam projecto
O conflito da água deve-se a um controverso projecto de um
sistema de adução de água que devia ser construído pelo
consórcio italo- boliviano, Aguas del Tunari, agora posto
em causa pelos acontecimentos de Cochabamba.
Os primeiros estudos para fazer face ao crónico défice de água
potável e para rega na região de Cochabamba datam de 1950,
altura em que se começou a desenvolver a ideia de aproveitar o
potencial do rio Misicuni. Em 1964 são feitos os primeiros
estudos de hidrologia, que confirmam a viabilidade do projecto,
mas durante quase trinta anos pouco é feito para o levar a cabo.
É em 1990, com o governo de Acordo Patriótico, que têm início
as diligências para um acordo com os italianos, que se vem a
concretizar em 3 de Setembro de 1999. Nessa data é assinado o
contrato de concessão do Projecto Múltiplo Misicuni e de
Serviço Municipal de Água Potável e Esgotos ao consórcio Aguas
del Tunari S.A., que a 1 de Outubro toma conta da respectiva
administração.
Face aos acontecimentos dos últimos dias o consórcio italiano
decidiu abandonar o projecto. As autoridades bolivianas têm
agora de encontrar soluções para garantir o fornecimento de
água à população e fazer face à rescisão do contrato. Uma
questão que se afigura complexa, tanto mais que a comissão
governamental criada para o efeito e que se afirma empenhada em
dialogar com as organizações e instituições representativas
de Cochabamba fez saber de imediato que não falará com a
Coordenadora da Água e da Vida, justamente a estrutura que
mobilizou os protestos populares.
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A
«conspiração»
Incapaz de fazer
face ao descontentamento popular e de reconhecer as suas
responsabilidades na crescente degradação da situação do
país, o governo boliviano, através do ministro da Informação,
Ronald MacLean, atribuiu entretanto a uma «conspiração do
narcotráfico» a revolta que grassa no centro do país.
Manifestando a sua indignação mas sem se intimidar, a
Coordenadora não só aumentou as suas exigências como se afirma
disposta a manter a pressão sobre o governo. Entre outras
coisas, exige-se o regresso dos desterrados, libertação dos
presos, pagamento dos prejuízos e indemnização pelos mortos.
Tanto a Coordenadora como as restantes instituições que se
uniram no protesto (Confederação de Camponeses, Federação de
Transportes e órgãos de poder local) anunciaram que vão manter
os bloqueios até à aprovação de uma Lei de Águas, a revisão
da Lei de Terras e a execução de um programa de desenvolvimento
integral na área rural.
Cochabamba está agora virtualmente ocupada por 20 000
agricultores provenientes de toda a região, que se juntaram em
vigília na Plaza de Armas da cidade. Os camponeses, que contam
com o apoio da população local, estão dispostos a manter o
bloqueio até que a nova Lei de Águas seja aprovada pelo
parlamento.