Cinco dias em Belgrado
Por Miguel Urbano Rodrigues
Rever Belgrado foi doloroso. Quando conheci
a cidade, há quase vinte anos, a grande sombra de Tito pairava
ainda sobre a Jugoslávia. A sua herança marcava a totalidade da
vida. Havia tensões, mas a atmosfera era de tranquilidade
social.
Esse Estado, que
conquistara respeito mundial, não existe mais. Foi destruído
por uma engrenagem que gerou países artificiais. Uma estratégia
imperialista iniciada pela Alemanha e desenvolvida pelos EUA
conduziu a matanças fratricidas em que povos da esfacelada
Jugoslávia foram lançados uns contra os outros, num apocalipse
de violência.
A ultima agressão foi ideada e comandada pelos EUA. Nela o
Kosovo foi peça de um ambicioso plano em que o objectivo oculto
é o desmantelamento da Rússia.
Não foi surpresa reencontrar uma Belgrado triste. A capital
resistiu com heroísmo à onda de barbarie norte-americana que
teve a cumplicidade dos aliados europeus. Mas o seu povo não
pode ser optimista. Tudo é incerto no futuro próximo de uma
sociedade que, tendo sido vitima de uma monstruosa agressão,
continua a ser vitima de sanções impostas pelo agressor.
Belgrado não apresenta muitas cicatrizes da guerra. Os
bombardeamentos visaram alvos pre-estabelecidos como os centros
de telecomunicações, a embaixada da China, a antiga sede do
Partido e edifícios do Governo, a fabrica de Pancevo (cuja
destruição provocou uma catástrofe ecológica) etc.
Em Novi Sad, aí sim, contemplei o rosto hediondo da agressão.
As pontes sobre o Danúbio foram destruídas, bem como a
televisão. Na Voivodina há uma forte minoria húngara e os EUA
pretendiam com o bombardeamento estimular na Região sentimentos
separatistas. Não tiveram êxito.
Em Belgrado a vida transcorre, normalmente. Os engarrafamentos
são comparáveis aos de outras capitais. As feridas espirituais
permanecem invisíveis ao contrario das destruições da guerra.
A pobreza não é mais ostensiva do que em Lisboa. Nas lojas a
oferta de produtos impressiona. Mas a maioria das roupas e dos
artigos industriais são de origem estrangeira. A agricultura
produz o suficiente para o autoabastecimento e excedentes para
exportação.
Torna-se, porém, evidente que a balança comercial é muito
deficitária. Como sobreviver num contexto de cerco?
As remessas dos emigrantes ajudam a tapar parte do buraco na
balança de transações, mas a crise económica tende a
agravar-se. O povo endivida-se para sobreviver, como me dizia o
economista canadiano Chossudovsky. E essa situação não pode
perdurar até porque a obtenção de recursos externos é
praticamente impossível.
Não tive oportunidade de manter contactos com dirigentes
jugoslavos. Estrangeiros residentes em Belgrado informaram-me de
que a oposição está activa. Mas presentemente o governo de
coligação tem um leque que vai da extrema esquerda à extrema
direita. O único denominador comum entre forças políticas
separadas por abismos ideológicos e programáticos é a
responsabilização dos agressores. Neste contexto a direita
neoliberal tem de agir com prudência. O sentimento
anti-americano é tão forte que qualquer aproximação a
posições dos EUA gera reacções imediatas. Entretanto, as
criticas oficiais, a Washington também são tímidas. A norma é
responsabilizar a NATO pela agressão, como se ela fosse uma
organização autónoma, com capacidade decisória própria.
No meu ultimo dia em Belgrado, caminhando entre a multidão pela
Knes Mijailova, na velha Belgrado ,sob um sol que anunciava a
primavera, fui até ao jardim que domina a confluência do Save
com o Danúbio. Contemplando os bastiões imponentes da antiga
fortaleza turca, meditava na historia trágica e épica do povo
sérvio. Aqueles eslavos do sul foram durante séculos a
trincheira da Europa cristã contra a avalanche otomana. Vencidos
pelas armas ,nunca se submeteram.
Foi no Kosovo que a nação nasceu. Ali perderam os sérvios no
século XIV contra os turcos a batalha que iria privá-los por
500 anos da independência.
Por um capricho da estratégia imperial americana o Kosovo
tornou-se na viragem do milénio a espoleta de uma nova
tragédia. Está hoje dominado por uma mafia albano-kosovar
protegida por tropas estrangeiras que representam os
responsáveis por uma monstruosa agressão.
Grande parte da humanidade não percebeu ainda o que se passou
ali. Mas a historia não para. Dentro de algumas décadas tudo
será diferente no Kosovo e na Jugoslávia. Como e quando se
processarão as mudanças?
Não há resposta para a pergunta. Muito dependerá do destino do
sistema de poder imperial que tem o seu polo nos EUA.