Bombeiros profissionais portugueses
Uma luta com visão de serviço público

Por Pina Gonçalves



Quem olha para as imagens de televisão mostrando bombeiros em luta urgente contra as chamas, tende a não pensar que são também trabalhadores, com problemas comuns a todos os trabalhadores. Mas, efectivamente, os bombeiros profissionais são trabalhadores da administração local, com uma história sindical e de luta recente, cujas reivindicações e aspirações são o lado menos conhecido da sua vida profissional.


Estes trabalhadores especializados nas tarefas de prevenção e combate a incêndios e outros sinistros foram, durante muitas décadas, afastados dos restantes trabalhadores da administração local por via da sua classificação como força militarizada, sujeição a um regulamento de disciplina de génese fascista e subordinação a comandos militares.
Os sapadores bombeiros estiveram submetidos a uma feroz repressão, sem os direitos, liberdades e garantias dos restantes trabalhadores municipais, incluindo o direito a estarem sindicalizados. Era uma resultante do decreto lei nº 312/80 e do Regulamento de Disciplina do Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa (RSBL) que, aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa em 1971, vigorou e esteve em aplicação até ao fim da década de oitenta.
Situações semelhantes foram vividas com maior ou menor acuidade, e por períodos de tempo variáveis a seguir ao 25 de Abril, pelos sapadores bombeiros do Porto, Gaia, Braga, Coimbra e Setúbal.
Entre outras normas igualmente salazaristas, o regulamento de disciplina manteve na sua redacção o dever de "repudiar o comunismo e outras ideias subversivas".
A própria privação da liberdade individual estava prevista através da aplicação de detenções nos quartéis até vinte folgas consecutivas, pena que foi aplicada efectiva e sumariamente até ao final do ano de 1989.


A hora da revolta

Em 1985, um grupo de sapadores bombeiros de Lisboa dirigiu-se ao Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa (STML), filiado na CGTP-IN, onde se sindicalizaram e começaram a organizar a sua luta.
A repressão do poder político na C.M. Lisboa e do comando militar contra estes funcionários aumentou consideravelmente, passando a ser dirigida essencialmente contra aqueles que deram a cara em representação dos restantes camaradas de profissão. Inscritos numa lista negra já sabiam de antemão que não tinham qualquer hipótese de serem promovidos e que lhes estava garantida a repressão regulamentar.
O primeiro dirigente sindical sapador bombeiro eleito em Portugal sofreu um processo disciplinar e foi despedido, considerado pela Câmara e pelo comando indigno de envergar a farda do RSBL porque distribuía comunicados do sindicato e exercia actividade sindical. Só foi readmitido quando o PCP na coligação Por Lisboa recebeu do povo da cidade o mandato para governar a cidade.
A retenção na fonte das quotizações sindicais foi proibida pela Câmara quatro meses depois das primeiras inscrições de bombeiros no sindicato e foi-se ao ponto de atrasar, em retaliação, os depósitos na conta bancária do sindicato respeitantes ao valor das quotas dos sócios dos outros sectores profissionais do Município de Lisboa.
As quotizações sindicais dos bombeiros passaram a ser pagas na sede, os seus comunicados distribuídos à socapa e os seus delegados sindicais foram eleitos em plenários semi clandestinos realizados nos dias de folga e fora dos quartéis, mas a luta não parou.


Sinais de mudança

Anos mais tarde, no início do ano de 1993, perto de alcançarem mais um importante avanço na sua luta com a aprovação de algumas melhorias ao seu estatuto profissional, publicado no ano anterior, e com o estatuto remuneratório em vias de publicação, os sapadores bombeiros de Lisboa quando acompanhavam a discussão da ratificação do estatuto - da iniciativa do grupo parlamentar do PCP – nas galerias da Assembleia da República, ouviram o deputado comunista João Amaral lembrar que:
"…Esse progresso, que está consubstanciado neste diploma, não caiu do céu nem foi oferecido por algum súbito assomo de generosidade por parte do governo. Deve-se este progresso a uma luta persistente desenvolvida pelos próprios bombeiros profissionais e pelos sindicatos que os representam. Refiro aqui em particular o Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa (STML) e o Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local (STAL). (…)
(…) Foi com luta e com muita coragem e determinação, enfrentando processos disciplinares, discriminações e perseguições e enfrentando o divisionismo promovido pelos próprios comandos, que as coisas começaram a mudar sendo este diploma sinal disso. Mas – é preciso dizê-lo aqui – as perseguições e os processos disciplinares não terminaram ainda…"
Efectivamente a luta dos sapadores bombeiros não parou, continuam a enfrentar problemas, resistências ao exercício do direito à greve, incompreensões várias e até ataques aos seus direitos, mas agora enfrentam-nos em unidade com todos os outros trabalhadores da administração local, lutando em conjunto pelos seus cadernos reivindicativos, por melhores salários, carreiras profissionais, pela redução do horário de trabalho e em defesa dos serviços públicos.


As mulheres ingressam na profissão

Durante a sua luta, os sapadores bombeiros de Lisboa e o STML não esqueceram este aspecto da democratização dos corpos de bombeiros profissionais. Depois de enfrentadas e ultrapassadas as primeiras resistências e preconceitos existentes, foi dado um pequeno mas significativo passo. A partir de 1994 o RSBL tornou-se o primeiro corpo de bombeiros profissionais do país a recrutar mulheres e é, por enquanto, o único a tê-lo feito.
Hoje, por direito próprio, são já sete as bombeiras profissionais em Portugal.


Um olhar para o futuro

Muitos bombeiros profissionais colaboram regularmente nos seus períodos de folga com corporações de bombeiros voluntários, conhecem a sua realidade, vivem com eles o risco e sentem juntos os problemas da vida de bombeiro, criando naturalmente laços de camaradagem.
Olhando a realidade, os sindicatos representativos dos trabalhadores da administração local sabem que a maioria, se não mesmo todas as corporações de bombeiros voluntários já contam com bombeiros assalariados a tempo inteiro, para poderem fazer face às necessidades permanentes e inadiáveis do serviço que prestam às populações. Há portanto, na prática, bombeiros profissionais cujas entidades empregadoras são as associações humanitárias de bombeiros voluntários.
No entanto, estes trabalhadores não contam com instrumentos uniformizadores da sua actividade e das suas condições de emprego e de trabalho. Há ausência de um estatuto profissional e remuneratório, de um sistema de ingresso e de carreira, o acesso à formação e treino não é garantido de forma igual para todos e a questão da sua sindicalização está na ordem do dia.
Os bombeiros profissionais sentem cada vez mais a necessidade de encontrar espaço para debaterem estes assuntos com os seus camaradas voluntários.
Considerando que a segurança dos cidadãos não se limita à vertente policial e que é uma responsabilidade que o estado deve assumir directamente, os trabalhadores dos serviços de prevenção e combate a incêndios e as suas organizações sindicais propõem que se evolua no sentido de uma maior profissionalização deste sector de actividade.
Tendo desde logo a preocupação da regulação das relações de trabalho e emprego dos assalariados ao serviço das diversas corporações de bombeiros voluntários, mas também problemas como o investimento nos serviços de prevenção e combate a incêndios, a distribuição equilibrada dos meios financeiros e reforço da capacidade de fiscalização preventiva dos bombeiros, os bombeiros profissionais e os seus sindicatos sabem que a abordagem e discussão que pretendem fazer não será fácil, haverá obstáculos e resistências a ultrapassar.
Pensando numa estrutura melhor e mais capaz dos seus serviços para, como agora se diz, enfrentar o século XXI, os bombeiros por intermédio dos seus sindicatos propõem desde 1992 que se avance com a criação de uma academia, aberta a todos os que exercem actividade nesta área, a partir da qual seja criada uma estrutura de serviço e condições efectivas que conduzam a uma dignificação da função em conformidade com o reconhecimento social do seu trabalho, garantam treino e formação profissional actualizada para todos, criem regras de recrutamento e promoção uniformes que assegurem o acesso preferencial dos bombeiros ao comando das suas corporações.
O desafio está lançado!


«Avante!» Nº 1376 - 13.Abril.2000