TEATRO
O
teatro invisível
Por Maria Helena Serôdio
Esta expressão é uma das propostas de
Augusto Boal para um teatro de intervenção que praticou na
América do Sul. Será um tipo de representação a fazer-se em
lugares públicos não especificamente destinados ao teatro, mas
que sejam muito concorridos, como na rua, à porta do cinema, num
restaurante, num mercado, etc. Os protagonistas serão actores,
mas tudo farão para dar ao seu trabalho o ar de uma
não-representação, ensaiando tão meticulosamente a sua
intervenção a ponto de preverem várias possibilidades de
reacção do «público».
Uma das hipóteses propostas seria a «discussão» num
restaurante. O actor, fingindo-se um comensal vulgar, pediria uma
iguaria mais fina do que o prato do dia, e em voz alta
comprometer-se-ia a pagar o preço que o empregado lhe indicava e
que era bastante elevado. Depois de bem comer, comentaria alto
que lhe soubera muito bem, mas que lamentava não poder pagar ...
em dinheiro. Oferecer-se-ia então para pagar a despesa com a sua
«força de trabalho»: podia encarregar-se do lixo, por exemplo.
Um outro actor, sentado numa outra mesa dirá que conhece alguém
que tem essa profissão, mas cujo salário é muito baixo. Feitas
as contas, teria de trabalhar dez horas para pagar aquele prato
(que teria comido em dez minutos). Seguir-se-ia um comentário
escandalizado perante a desproporção entre o que se ganha em
empregos modestos e o preço de uma refeição saborosa servida
num restaurante. Outras propostas de trabalho seriam sugeridas
(jardineiro, por exemplo), novas reacções de surpresa e
escândalo, até que um outro actor proporia que se fizesse uma
colecta para ajudar a pagar a conta, o que levaria a reacções
muito diversas por parte do «público»: desde a vontade de
ajudar até à condenação de quem ambicionou comer melhor do
que os outros.
Não será fácil investir neste teatro de intervenção hoje em
dia, embora estas técnicas de «agit-prop» possam ser
experiências curiosas do ponto de vista sociológico. Sei de
algumas companhias noutros países que ainda apostam neste tipo
de teatro de rua mais ou menos «disfarçado», mas que não visa
a intervenção política, antes procura comentar certos
procedimentos do quotidiano. E depois há a versão «degradada»
do que tanto se explora em televisão e que tem merecido
designações como «câmara escondida» ou «apanhados» e que
só procura provocar o riso, às vezes de forma bem discutível.
Mas o título, que eu aqui proponho, visa também falar de uma
outra «invisibilidade»: refiro-me a uma série de acções
teatrais dinamizadas por gente de teatro mas que não visam a
espectacularidade do evento teatral propriamente dito, nem saltam
facilmente para as páginas dos jornais. É o «teatro» feito
nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, com crianças
inadaptadas, em muitas escolas, em localidades, etc.
Sei de experiências muito interessantes que parecem ter excedido
as expectativas, outras que se calhar envolveram um grande
esforço e não parecem ter trazido grande satisfação a quem
nelas tanto «investiu» em trabalho e afecto. São, porém,
riquezas culturais importantes que faz sentido apoiar e que
talvez merecessem uma maior visibilidade e uma mais concertada
discussão entre todos os que a elas se dedicam.
Há nessas experiências não apenas um sentido de dádiva por
parte de todos quantos nelas participam, mas também a
ampliação de possibilidades do humano (conquistado numa forma
de prática artística), bem como a criação de uma cumplicidade
muito especial capaz de vínculos sociais e afectivos
importantes.
Esse tipo de vínculo encontra-se também no campo do teatro de
amadores, embora seja evidente que as condições em que ele hoje
é praticado sejam substancialmente diferentes das que existiam
nos anos 60. Há hoje uma maior dispersão por muitas outras
formas de actividade cultural e recreativa (porque são muitas as
solicitações que concorrem com o teatro), e há um certo
desequilíbrio nos apoios que são facultados a grupos de teatro
que estarão numa idêntica zona de semi-profissionalismo.
Mas algumas dessas companhias de teatro, que iniciaram a sua
actividade no início dos anos 70, têm sabido manter uma
notável capacidade de intervenção cultural e artística, mesmo
sem as condições económicas desejáveis. É o caso do
«Intervalo, Grupo de Teatro», que foi «Primeiro Acto» em
Algés, e que hoje, mercê de vicissitudes várias, tem esse
outro nome e uma nova residência, em Linda-a-Velha. Liderado por
Armando Caldas, tem mantido uma actividade muito regular e vem
praticando um repertório variado que tenta responder a gostos
diversificados. Recentemente celebrou Lorca, reviu Almeida
Garrett, encenou Ibsen, e tem hoje em cena uma comédiazinha de boulevard
muito ligeira de Labiche: Os trinta milhões de Mister Bill.
Não faltam nesta adaptação pequenas «buchas» com sentido de
oportunidade e humor, e interpretações muito seguras e de
grande comunicabilidade de Fernando Tavares Marques e Helder
Anacleto (dois já veteranos) e da jovem Paula Manso no papel de
«cocotte». E, mais uma vez, no conjunto de actores, criadores e
técnicos que mobiliza, e no público que tem sabido atrair, vai
criando cumplicidades. Bem visíveis a quem lá vai.