A sombra



Ainda se faziam ouvir os protestos de milhares de trabalhadores pelas recentes decisões do Governo quando o PSD retirou das prateleiras da sua sede à Lapa uma nova versão de «governo sombra».
Ainda que na dúvida sobre se a iniciativa se deve a algum acto de exorcização a fantasmas internos ou de resposta a apelos vindos dos quatro cantos, incluindo do PS, para que o PSD dê aquele toque de oposição cordata e bem falante que ao ambiente falta, a verdade é que a supracitada iniciativa é o que é: Um exercício de retórica que, independentemente da intenção que terá e do foguetório que proporcionará, não bule com a questão central da conteúdo e natureza da política que vai fazendo, agora pela mão do PS, o seu caminho.
Pelo que se célebre ficou o desabafo «Desta vez safámo-nos» que Jorge Coelho terá deixado escapar, em acto diligente de prestação de contas a seu chefe algures no Cairo, no rescaldo do expressivo protesto contra a decisão do aumento dos combustíveis não menos célebre teria ficado o registo, se a alguém tivesse sido possível sondar a inconfidência que em pensamento Coelho terá feito a Guterres a propósito da iniciativa do PSD, que em bom português se traduziria na frase «Com estes, safamo-nos bem»...
Não será tarefa difícil desvendar as razões do contraste entre a fundada inquietação do primeiro desabafo e a tranquilidade com que previsivelmente o PS e o Governo se permitirá encarar esta iniciativa do PSD. É que a razão primeira para o contraste reside na constatação que o Governo faz de que é na mobilização popular e na luta em defesa de direitos que se pode desenvolver a consciência social e política capaz de se vir a opor ao prosseguimento da política de direita.
Mesmo reconhecendo que a noticia do «governo sombra» venha a fazer a delicia daqueles que na nossa praça haviam decretado a inexistência de oposição pela ausência daquele usual esbracejar e dos cíclicos duelos verbais que alternadamente PS e PSD representam para preservar o essencial da política de direita e ajudar à sua perpetuação, a verdade é que ela não altera duas realidades. Que a identificação das propostas e projectos entre PS e PSD é tal que à sua sombra bem podem repousar os interesses instalados dos senhores do capital. E que no País há de facto oposição à política de direita, uma oposição que centrada no desenvolvimento da luta e no reforço do apoio ao PCP, pode de facto abrir caminho à construção de uma nova política e de uma alternativa de esquerda. — Jorge Cordeiro


«Avante!» Nº 1376 - 13.Abril.2000