A despenalização do consumo de drogas

Por Carlos Gonçalves



Estão em fase de (pré)discussão propostas de alteração ao estatuto jurídico do consumo de drogas com origem no PCP, no Governo PS e no Bloco de Esquerda, daí a necessidade de explicitar posições nesta batalha de ideias, com total disponibilidade democrática, mas com a serenidade e firmeza de quem sempre intervém com a preocupação maior duma resposta eficaz ao problema da toxicodependência no nosso país.

Há um mês o PCP tornou público um conjunto integrado e coerente de propostas que tocam aspectos essenciais da estratégia de luta contra a droga e visam instituír uma efectiva vontade política nesta matéria.
Um Projecto-Lei sobre os princípios gerais da prevenção primária, reforço da intervenção em meio escolar, criação de um dispositivo de Centros de Apoio em áreas de risco e medidas de reinserção.
*Um Projecto-Lei de alargamento da rede pública para tratamento e reinserção, com novas Comunidades Terapêuticas, Centros de Dia e Apartamentos de Reinserção e visando eliminar as listas de espera nos Centros de Atendimento.
Dois Projectos-Lei instituindo o Programa Nacional de Prevenção e Combate ao branqueamento de Capitais e aperfeiçoando legislação diversa nesta matéria.
E dois Projectos-Lei que despenalizam o consumo de drogas e establecem o regime de mera ordenação social que lhe é aplicável.

Despenalizar o Consumo

De há muito que o PCP considera contraproducente a aplicação das penas de multa e prisão até um ano previstas na Lei para o consumo de drogas ilícitas. Porque são ineficazes na dissuasão e no caso da prisão, aplicada isolada ou cumulativamente com pena por outros crimes, agravam a situação de muitos jovens consumidores, lançados na dependência profunda e na criminalidade.
A estigmatização criminal do simples consumidor mostrou-se desadequada. Se o toxicodependente é um doente, como em geral se aceita, do que ele precisa é de apoio e tratamento e não de tribunais e prisão.
Por outro lado, o consumo de drogas é socialmente nocivo e comporta consequências que devem ser dissuadidas e legalmente acauteladas, o que, no caso dos estupefacientes e psicotrópicos, implica manter a ilicitude. Não apenas por imposição da ONU, ou do quadro cultural do país, mas sobretudo porque a cedência da ilicitude comportaria efeitos muito negativos, nomeadamente a expansão da toxicodependência e de certos danos sociais colaterais.
Mantemos também a apreciação de que o tráfico deve ser combatido, e não só o grande tráfico e branqueamento, que são determinantes, como também a sua base - o tráfico de rua, só possível de enfrentar com a ilicitude do consumo que viabiliza a acção policial contra o «dealer».
Assim, o PCP mantém a moldura penal do tráfico e propõe a despenalização do consumo de drogas, isto é, que deixe de ser considerado ilícito criminal e ceda a aplicação do direito penal – as penas de prisão e multa – caindo também o trânsito dos simples consumidores pelo sistema de justiça.
O consumo continua proíbido mas passa a ser sancionado como ilícito de mera ordenação social - com advertência dos seus efeitos nocivos e outras sanções administrativas - mas sempre com a oferta de tratamento. A decisão e promoção destas medidas é do Instituto Português das Drogas e Toxicodependência.
Tais são as nossas propostas de despenalização, visando dissuadir o consumo e encaminhar os toxicodependentes para tratamento e reinserção.


As propostas do Governo PS

O PS explicitou finalmente, na proposta legislativa que o Secretário de Estado Vitalino Canas (VC) anunciou há dias, que concorda em deixar caír a criminalização do consumo de drogas ilícitas.
É um facto positivo, mas não faz esquecer que já se perderam quatro anos, em que teria sido possível tratar muitos jovens consumidores, se o PS em 96 tivesse apoiado as propostas do PCP.
A proposta do Governo contém elementos convergentes com a do Partido e isso pesará positivamente nos próximos passos.
Mas, diferentemente do que afirma VC, ambas as propostas descriminalizam e despenalizam o consumo de drogas, à semelhança de Espanha e Itália, tal e qual esclarece o Observatório Europeu da Toxicodependência no Relatório de 99, e, nessa medida, opõem-se à legislação em vigor e às propostas de legalização ou liberalização do consumo. Seria positivo, no actual quadro, evitar confusões terminológicas que facilitem as mistificações da direita.
Tal como seria positivo que caísse a coima prevista pelo Governo como sanção principal, é aliás VC que a admite só excepcionalmente e a justifica por ser a sanção tipo do direito de mera ordenação social.
Ora nada é menos esquemático que o consumo de drogas, nem há sanção menos indicada nesta matéria que a coima. Por isso, era bem melhor instituír apenas normas que, embora atípicas, se adequassem ao objectivo de tratar os toxicodependentes.


As mistificações da direita

No debate do estatuto jurídico do consumo de drogas o PP optou pela mistificação e a demagogia contra a «esquerda que quer liberalizar as drogas». Visa assim inventar um referendo no terreno da desinformação e da chicana política. Esperemos que o PS não volte a embarcar.
Mas há ainda a JSD que travestida de «radical» considera o consumo um direito individual (ao corpo), que não deveria ser desvalorado pela Lei – como se a saúde pública e do consumidor e os bens envolvidos não carecessem de protecção jurídica.
Chegam assim a posições idênticas ao Bloco de Esquerda (BE), de legalização do consumo e venda de drogas, e ao mesmo tempo defendem orientações liberais de demissão do Estado da responsabilidade da prevenção e tratamento.


Um Bloco de equívocos

O Projecto-Lei apresentado pelo BE, na linha de Almeida Santos, junta boas intenções e alguns equívocos numa proposta tecnica e politicamente inaceitável.
O erro inicial é afirmar que a toxicodependência afecta «de forma tão grave a sociedade» em resultado de «nove décadas de proibição e repressão do consumo». A isto chama-se «olhar para a árvore e não ver a floresta».
Para nós, a repressão do consumo comporta efeitos muito negativos e por isso urge substituí-la pela prevenção e tratamento, mas daí a identificar a causa dos multiplos problemas da dependência de drogas com o estatuto jurídico do consumo vai um enorme equívoco.
O PCP considera que esta organização social é causa primeira da toxicodependência e que o lucro é o seu «pecado original». Aí repousam as razões que movem o mercado, e isto é verdade para as drogas legais ou ilegais. O álcool é legal em Portugal há séculos e nem por isso os seus efeitos são menos graves do que os das drogas ilícitas, pelo menos para a saúde pública.
Nos Estados Unidos a «Lei Seca» vigorou em confronto com usos antigos - diversamente da proibição do consumo de estupefacientes em Portugal - mas quando implodiu houve uma acentuada e continuada expansão do consumo, com consequências exponencialmente agravadas. Esperar agora resultados muito diferentes no caso das drogas ilícitas seria absurdo.
A «separação de mercados» das drogas (ditas) leves e duras é uma questão a (re)ponderar futuramente. Mas aqui e agora, diferentemente da permissividade instituída na Holanda há um quarto de século, a legalização do «comércio passivo de derivados de cannabis», proposta pelo BE, não teria efeito real na contenção do consumo de heroína, que há anos se expandiu e está hoje em processo de estagnação, e resultaria presumivelmente num grande acréscimo do consumo de drogas «leves».
A «distribuição» no sistema público de saúde de heroína e cocaína aos «que dela necessitem para suprir o estado de abstinência», isto é, a garantia do fornecimento destas drogas aos toxicodependentes, é uma ideia que, convém clarificar, não está implementada em qualquer local deste planeta.
O que existe são projectos-piloto com universo restrito e objectivo terapêutico delimitado, para doentes particularmente difíceis ou situações especiais. São experiências a avaliar criteriosamente e que admitimos ponderar para Portugal, em projectos estritamente terapêuticos e com normas e objectivos precisos.
Mas não partilhamos duma espécie de «estatização da droga», em que o «cartão de toxicodependente» daria direito a que o Estado alimentasse a doença, pois o efeito seria, nesse caso, um surto epidémico de dependência de drogas e «narco-turismo».
O tráfico e o consumo clandestino continuariam para os «não encartados» - menores, principiantes e marginalizados - e para as drogas não «estatizadas», cada vez mais toxicógenas.
E o lucro do negócio legalizado de drogas cresceria de novo com a privatização, os preços de cartel, a redução dos custos de distribuição e a expansão do mercado, tal qual as propostas de Milton Friedman a este respeito, e somar-se-ía aos lucros mafiosos no sistema fianceiro globalitário.
Por tudo isto, a proposta do BE é globalmente inaceitável.

Sobretudo, no nosso entender, a grande questão continua a ser a de enfrentar e fazer recuar a toxicodependência, com coerência e eficácia, e para isso resulta necessário e possível debater e juntar ideias e forças. É esse o caminho do PCP.


«Avante!» Nº 1377 - 20.Abril.2000