Reformas cosméticas
para os 500 anos de atraso

Por Zillah Branco



Todos sabem que as mudanças que decorrem do crescimento e do amadurecimento implicam em alguma forma de sofrimento para os que são conservadores.


O adolescente não quer deixar de ser a criança mimada que foi, o adulto não quer deixar de ser o jovem irresponsável que lhe permitiram ser, o velho não quer perder o frescor da juventude em que fixou a sua imagem de auto-afirmação. Não é o caso dos que cedo enfrentam as dificuldades da vida. A criança que trabalha quer ser maior e mais forte, o adolescente responsável quer ser respeitado como adulto, o velho quer usufruir da experiência acumulada que consolida a sua segurança interior.
Este quadro pode ser transposto para a sociedade brasileira onde a elite festeja os quinhentos anos de um país que pretende conservar como um enorme bebê dependente do paternalismo da velha oligarquia nacional e dos vizinhos cobiçosos. As reformas modernizantes não vão além das roupas e dos objectos da moda altamente tecnológica. Reforma agrária, no Brasil, é apenas «política de terras», como mostra a economista Maria da Conceição Tavares no seu recente livro «Destruição Não Criadora» (ed. Record, 1999, RJ/ Brasil), explicando que «o processo de ocupação do território gera rendas de monopólio privado através da apropriação de recursos públicos e diversas formas de articulação/exploração da mão-de-obra e expropriação do seu produto».
O povo brasileiro, amadurecido por 500 anos de muito trabalho e pouca esperança, quer o seu país adulto, independente e auto-confiante. Emergente, que seja, para satisfazer a terminologia eufemística que esconde a pobreza de que se envergonha a elite, mas para emergir em condições de igualdade com os seus parceiros mundiais.
Enquanto for mantido o autoritarismo da velha estrutura social habituada à prática do poder predatório que exaure a natureza e a população para servir um mercado orientado de fora para dentro do país, as medidas reformistas no Brasil vão corresponder mais ao espírito mercantilista e colonialista implantados há 500 anos do que ao capitalismo moderno. Conceição Tavares denuncia a origem dos conflitos, que têm deixado um rasto de sangue e violência em toda a vasta área rural brasileira, na «vigência precária e socialmente discriminatória do Estado de Direito no campo. O marco jurídico da reforma agrária e sua regulamentação privilegiam interesses dos latifundiários, dando margem a todo tipo de manobras que permitem iludir, atrasar e encarecer o processo de desapropriação»... «Na aplicação prática de toda a legislação reforça-se a proteção aos interesses dos latifundiários e omitem-se as medidas que podem beneficiar os sem – terra»... «Do ponto de vista da estrutura agrária, os conflitos são a expressão de dois grupos de factores principais. O primeiro é de natureza político-social: exclusão social para os que não possuem a terra ou a ela têm acesso marginal e precariamente, e preservação da estrutura de poder político regional e local para os latifundiários. O segundo é de natureza económica: enquanto a terra representa para os excluídos um instrumento de trabalho, para os senhores de terra ela é utilizada principalmente como instrumento de valorização patrimonial». E conclui: «Sem a implantação de um mínimo de legalidade democrática no campo não haverá possibilidade de uma intervenção eficaz do poder público no domínio agrário.»... «A reforma agrária tem um conteúdo econômico de uma atualidade dramática, pelo menos para a maior parte da população excluída, para a qual o acesso à terra representa a única alternativa concreta de emprego produtivo e de geração de renda. Convém não esquecer que a população rural, apesar da rapidez do processo de urbanização, ainda é hoje em torno de 35 milhões, maior, em termos absolutos, do que em 1950» (e três vezes e meia a de Portugal).


Começar de novo

No final do século XIX um pequeno livro com o título de «Catecismo do Labrego», de Frei Marcos Portela (1888, Galiza) registava: «Quem são os pacíficos? Os bois e nós (os camponeses). Quem são os que sofrem perseguições pela justiça? Os que se revoltam contra a justiça». Poderia ser escrito hoje sobre a situação social no campo brasileiro.
Mas o Brasil comemora os seus quinhentos aninhos no ano 2000, à entrada do terceiro milénio, carregando toda esta tralha moderna de internet, telefone celular, investigações interplanetárias, produtos transgénicos, etc., e mais um governo da mais refinada elite intelectual. Por um lado é ridículo defender a estafada condição de «gigante adormecido», que já seria sinónimo de atraso no século XIX, por outro é uma atitude criminosa contra o povo, legítimo proprietário do país, mas excluído dos benefícios sociais e económicos do seu próprio trabalho.
Para retomar as palavras de Conceição Tavares que, ao visitar o sertão brasileiro conheceu a luta do «povo miúdo» pelos seus direitos, «todos os direitos, a começar pelo direito à vida»(...), «Por baixo da rede dos "Senhores da Terra", das velhas oligarquias rurais, no espírito cansado das classes médias esmagadas das grandes metrópoles, a partir do bagaço e da força dos trabalhadores sem terra, sem teto e sem emprego, está-se organizando de novo a Resistência, tecendo as pontes para sair deste pântano em que nos meteu a nossa transição democrática apodrecida«... «O Poder e o Dinheiro das elites não autorizam a sonhar com a nova travessia, sem sair de casa, pela Internet. O jogo global e a concorrência dos capitais e dos países ex-candidatos a potência estão liquidando mais uma etapa do tempo do dinheiro. Encurtado até o paroxismo, o futuro já está aí, e 2001 não será vivido pelas elites com uma valsa de Strauss, numa nave boiando no "espaço sideral".

O próximo ano prepara de novo o ritmo e a poesia das massas em movimento, o rap surdo dos que se recusam a ser os eternos condenados da Terra.»... «Estamos chegando ao fim do século, os dois Brasis finalmente unificados, pelo tempo do mundo!» (...) «Teremos de recomeçar, de novo, a conquista do Planalto Central do país».
Feliz Aniversário, Brasil.


«Avante!» Nº 1377 - 20.Abril.2000