CRÓNICAS
DA IDADE MÍDIA
Racismo?
Por Ruben de Carvalho
A semana passada, Óscar Mascarenhas publicou no «Diário de Notícias» um interessante e bem humorado artigo dedicado à interminável polémica sobre se os portugueses são ou não racistas ou, pelo menos, mais ou menos racistas que o resto dos europeus.
Há várias coisas a
sublinhar no texto de Óscar Mascarenhas.
Uma primeira e talvez a mais importante a sua
acertada crítica ao ambíguo papel de certos «estudos de
opinião» e «investigações sociológicas» que, de
inquéritos e percentagens em riste, vêm demonstrar que essa
ideia generalizada sobre uma particular margem de tolerância que
a vivência histórica teria criado nos portugueses não
corresponde à realidade: «uma autoflagelação tanto em moda
(...) falsa, e se fosse verdade, seria uma verificação inútil,
quando não contraproducente, ou seja, estimularia o racismo
(...)» Português de origem indiana, como recorda, Óscar
Mascarenhas sabe por experiência própria do que está a falar e
recorda o conjunto de circunstâncias contraditoriamente
invocadas para as «demonstrações» em causa, salientando bem
que, na sua esmagadora maioria elas relevam bem mais da pura
dureza da exploração económica e das dificuldades sociais
inerentes ao sistema, bem como da complacência e mesmo
cumplicidade do Estado nessas práticas do que a qualquer outra
coisa.
«Dizer de um povo que é racista conclui quando
ele não se sente racista nem entende de onde é que lhe vem o
racismo, é criar-lhe um cerco psicológico terrível. Um dia, em
desespero, ele dirá: "Ai sou racista? Pois então seja!"»
Ume economia própria
O texto de Óscar
Mascarenhas antecedeu de escassos dias a tragédia da discoteca
«Luanda» e esta coincidência no tempo sugere uma reflexão.
O que se passou em Alcântara relevará de questões diversas que
a polícia e os tribunais terão de esclarecer e punir, mas a
violência do drama desencadeou um natural conjunto de
informações simultâneas que chamam a atenção.
O «Luanda» era uma das maiores e mais bem equipadas discotecas
de Lisboa e integra-se na vasta e dinâmica indústria de
diversão ligada à comunidade afro-portuguesa residente em
Lisboa e arredores. Animada pela sua música, frequentada
maioritariamente pelos seus jovens embora não só -,
espalhando-se por toda a cidade e relacionando-se com um tecido
naturalmente contíguo: edições discográficas, espectáculos,
actividades de convívio, respectivas promoções, etc.
Esta actividade não será evidentemente a única (possivelmente
nem sequer a economicamente mais relevante) mais ou menos
autónoma na comunidade africana e, pelo contrário, talvez
constitua apenas um índice visível de uma dinâmica própria e
positiva de afirmação e estruturação. A assim ser, temos
contudo o primeiro elemento a merecer reflexão.
A verdade é que é indispensável que esta estruturação
económica, inevitavelmente relevante socialmente, não venha a
constituir um elemento de separação, de insulação, uma
espécie de tecido económico racialmente determinado dentro do
tecido económico geral, contribuindo assim para o aparecimento
de clivagens ao nível social e quotidiano.
Estamos perante uma responsabilidade que não é especificamente
do Estado, das autarquias, da escola, da legislação, antes se
apresenta transversal a toda a sociedade. Se, tal como bem
sublinha Óscar Mascarenhas, os afloramentos de xenofobia e
intolerância se radicam essencialmente na actividade económica
(na exploração do trabalho, para ser mais exacto), a economia
é também um dos elementos mais fortemente integradores das
sociedades. O que significa que do comércio retalhista à
actividade bancária, da acção das seguradoras à publicidade
é indispensável que se reflicta a realidade de Portugal ter
hoje uma população largamente miscigenada e multicultural e que
compreende-lo é não apenas o que um economista chamaria um
imperativo de mercado, mas também uma necessidade socialmente
relevante.
Novas gerações
Um segundo aspecto
que merece referência é, seja qual for, em rigor, a dimensão e
significado do tecido económico animado pela comunidade
afro-portuguesa em Portugal, parecer indesmentível que as
actividades ligadas à diversão e à moda nela representam uma
parte no mínimo significativa.
O que tal facto imediatamente revela é que o público que o
torna possível é essencialmente jovem, o que, não constituindo
propriamente novidade, requer particular atenção.
A verdade é que os dias passam tranquilamente uns atrás dos
outros, as mutações sociais fazem-se lentamente nesse ritmo
tranquilo da vida, mas o equilíbrio na comunidade africana já
hoje muito plausivelmente terá deixado de ser favorável a
cidadãos nascidos nos seus países de origem, para dar lugar a
uma geração ou mesmo já duas de jovens nascidos
em Portugal.
A experiência de numerosos países revela como este facto altera
profundamente o quadro cultural, social e psicológico, com
implicações da mais variada ordem, das escolares às
urbanísticas, das culturais às profissionais.
É discutível que se esteja, em geral, a acompanhar esta
evolução e em função dela actuar com a mesma atenção que se
dedica a combater e justamente os afloramentos de
racismo ou xenofobia que despontam aqui ou ali. Mas é sem
dúvida mais urgente, mais necessário e mais produtivo para o
presente e o futuro de uma sociedade como a desejamos.