Varanda da Europa
As novas gerações não chegaram a conhecer
uma coisa chamada Actualidades que, nas sessões
de cinema anteriores ao 25 de Abril, frequentemente compunha a
primeira parte do programa e funcionava como aperitivo ao filme
principal. «Aperitivo», digo bem, mas a tal ponto indigesto que
havia espectadores a trocarem-no por uma cervejita ou um cálice
de anis cortados a pevide e beberricados ao balcão do foyer
(francesismo que, à época, pomposamente identificava a zona de
convívio das casas de espectáculo), enquanto na sala escura
desfilavam as maravilhas que o fascismo mostrava de si próprio e
dos seus dirigentes, infalivelmente constituídas por felizes
inaugurações presididas pelo «Venerando Chefe de Estado» ou
«Sua Excelência o Sr. Ministro Doutor Fulano de Tal».
Eis, em suma, as Actualidades, uma espécie de
telejornal onde as notícias eram todas boas e os protagonistas
sempre os mesmos. E vice-versa.
As novas gerações não conheceram esta modalidade de propaganda
com que o salazarismo fazia prova do seu inesgotável ridículo,
mas não perderam grande espingarda: é que, apesar de
ridículas, as Actualidades tinham tanta graça como uma
viola num enterro.
Todavia, se os jovens deste país quiserem ficar com uma ideia da
coisa, não precisam de apresentar uma petição na Cinemateca
para que esta desenterre uma sessão preenchida com as tais
Actualidades: para satisfazerem a curiosidade,
bastar-lhes-á assistir a uma das emissões do programa Aqui
Europa actualmente em exibição nas próprias casas
portuguesas, via RTP.
Está lá tudo. O ambiente de felicidade geral, boas notícias
atrás umas das outras, optimismo a jorrar de cada assunto
apresentado, protagonistas irradiando firmeza e convicção,
discursos louvando o presente como dádiva dos deuses e aproando
o futuro com a majestade dos vencedores. Tudo num tom pedagógico
e muito moral, como se aqueles interlocutores fossem os
celebrantes de uma grande Boa Nova e todos nós a congregação
de povos eleitos que importa alertar para o destino glorioso que
os poderosos desta Europa nos reservaram.
As próprias diferenças entre os dois programas apenas acentuam
as semelhanças. No Actualidades, Portugal estava no
centro de um império que ia de Minho a Timor e tinha por missão
dar novos mundos ao mundo. No Aqui Europa Portugal
integra um novo império a União Europeia e tem
por objectivo impor um mundo novo aos velhos mundos que
construíram o continente europeu.
Em suma, Portugal continua na crista do destino: durante séculos
dilatou o império da fé, agora encolhe-se no império do euro.
Não somos nós a dizê-lo foi provado no Actualidades
e ratificado no Aqui Europa, confirmando mais uma vez
não ter sido por acaso que o Fado nasceu em Portugal.
Felizmente o nosso fado também nos diz, com saber de
experiência feito, que há sempre maneira de nos furtarmos aos
impérios que os poderes nos querem impingir.
No caso do Actualidades, bastava uma cerveja fresca e um
pacote de pevides para os abandonar ao naufrágio na sala escura.
No Aqui Europa basta mudar de canal ou, melhor ainda,
apanhar fresco e ir ao cinema, onde não corremos o risco de
apanharmos uma seca.
É que os filmes, agora, pelo menos não têm documentários.
Henrique Custódio