O porta-voz iluminado



Vitalino Canas – que ocupa o abundante cargo de «secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros», ao qual atrela, ainda, a canora função de «porta-voz» do dito Conselho – concedeu entrevista ao «Semanário». Colocado perante a questão de saber se sim ou não «as greves e o buzinão» traduziam «um certo descontentamento em relação ao Governo», Vitalino observou que «naturalmente, não podemos ignorar a existência de alguma agitação social», alertou para o facto de as greves prejudicarem «a vida de muitos portugueses» e decretou que «essa agitação social» não tem razão de ser já que vivemos num mar de rosas em constante melhoria. E sem esperar pela óbvia pergunta – porquê, então, essa agitação social? – Canas, em linguagem de hoje, respondeu o que teria respondido, na linguagem de então, o seu homólogo de há trinta anos: toda esta agitação «se deve ao habitual ritual de conflito que o PCP gosta de alimentar antes do lº de Maio».
Quer Vitalino dizer com isto que os muitos milhares de trabalhadores que têm recorrido à greve, que se manifestaram em Lisboa no dia 23 e que produziram o buzinão, agiram e agem assim apenas porque o PCP os arregimentou para tal. Isto porque, sempre segundo Canas, não há razão para protestos, bem pelo contrário: vivemos no melhor dos mundos, o talento de Guterres é mundialmente reconhecido e os trabalhadores, se não fossem ingratos, estariam satisfeitíssimos com os míseros aumentos de salários; brindariam com champanhe francês os brutais aumentos de combustíveis e implorariam ao Governo que aumentasse imediatamente as garrafas de gás, os transportes e todos os bens de consumo; enviariam entusiásticos telegramas algures para a Europa agradecendo ao engenheiro Guterres o facto de Portugal estar à frente de todos os países da União Europeia em matéria de desigualdades; fariam manifestações de regozijo pela má qualidade de emprego de que disfrutam – e os jovens, esses então, festejariam eufóricos a precariedade do emprego, os aumentos das taxas de juro dos empréstimos para compra de habitação e a política (des)educativa do Governo... Mas não: os ingratos, a mando do PCP, fazem greves e manifestações e buzinões; exigem aumentos de salários e não de preços; reivindicam emprego com direitos e a valorização e dignificação do trabalho; enfim, incomodam o senhor engenheiro com protestos descabidos e, pior do que isso, deixam o Governo mal visto junto dos donos do País e da Europa. Porque, diz Canas, «só nos deve honrar, como portugueses, o facto de Guterres ter o prestígio que tem» na Europa e no Mundo – tanto mais que já ninguém sabe se a luz que lá do alto nos ilumina irradia do Sol ou de António. — José Casanova


«Avante!» Nº 1377 - 20.Abril.2000