Os que não desistem


Momento maior da História do nosso País, a Revolução de Abril foi, sem dúvida, o acto mais progressista e de maior modernidade da nossa vida colectiva. Daí a dimensão e a força populares das comemorações em cada ano que passa; daí a crescente presença de jovens – muitos dos quais nascidos depois do 25 de Abril – nessas comemorações; daí a integração das lutas e das reivindicações dos trabalhadores e do povo na festa que é, todos os anos, comemorar Abril.

Para segmentos significativos da população portuguesa, a Revolução de Abril e as suas conquistas constituem uma referência única e com lugar permanente nas suas memórias. E com muitas e concretas razões para isso. Com efeito, a Revolução mostrou que a luta pode tornar possível o impossível, nomeadamente: a liberdade – pela qual tantos homens e mulheres haviam lutado e morrido; a democracia – aplicada numa amplitude reveladora das suas inesgotáveis potencialidades; a reforma agrária – construção histórica do proletariado agrícola que, dando a terra a quem a queria trabalhar, nos mostrou pedaços do futuro; as nacionalizações – liquidando os principais sustentáculos económicos do regime fascista e dando ao povo o que ao povo pertencia; o poder local democrático – escola de democracia e caminho de resolução participada dos problemas das populações; os direitos dos trabalhadores – objecto de lutas heróicas e vertente indispensável da democracia; enfim, e em consequência de todas essas conquistas, a mais justa repartição da riqueza de toda a nossa História e, por isso, a elevação das condições de vida e de trabalho da maioria dos portugueses a níveis jamais alcançados.

Engana-se quem persista em querer ver, na enunciação acima feita e nas próprias comemorações de Abril, quaisquer sinais de saudosismo. Relembrar as conquistas da Revolução é lembrar que elas são possíveis e que continuam a ser parte integrante do nossos sonhos e objecto maior da nossa luta.
As conquistas de Abril, pelos sinais de futuro que transportavam, fizeram estremecer todos aqueles que, embora arvorando-se em embaixadores plenipotenciários da «modernidade», elegeram como sua tarefa principal defender a todo o custo o velho sistema que lhes garante privilégios e mordomias que ferem a democracia e a justiça social. A contra-revolução, posta em marcha logo que foram dados os primeiros passos no sentido do progresso social e dispondo de poderosos apoios do grande capital nacional e internacional, logrou destruir parte considerável dessas conquistas. Assim, em nome da «modernidade», a reforma agrária foi destruída, reconstitui-se o latifúndio, terras voltaram a ficar ao abandono, searas foram transformadas em coutadas; o processo de privatizações, traduzido num autêntico saque de empresas públicas altamente rentáveis, recolocou na posse de velhos e novos grandes grupos nacionais e estrangeiros as alavancas do poder económico; direitos importantes alcançados pelos trabalhadores foram-lhes retirados por ordem e em benefício do grande patronato; o conteúdo democrático do Portugal de Abril foi brutalmente empobrecido – isto é, em muitos aspectos regressou-se, de facto, ao passado. Em nome da «modernidade».

As comemorações do 26º aniversário do 25 de Abril trouxeram mais uma vez para as ruas e praças do País muitos e muitos milhares de pessoas que assim quiseram recordar o primeiro dia da liberdade e da caminhada para um futuro diferente e melhor nesse dia iniciada. Ao contrário do que previu um dos habituais produtores de previsões encomendadas em texto publicado a 24, a «burocratização e o desinteresse» não estiveram presentes na comemoração do 25; os jovens não foram «poucos» mas muitos «a comparecer»; a «festa da democracia» foi festa e luta pela democracia e, portanto e por isso mesmo, «jornada anticapitalista»; a «próspera economia de mercado» foi confrontada com a exigência de uma repartição democrática dessa prosperidade; a liberdade e a democracia foram «celebradas» não acéfalamente como coisas abstractas e inócuas mas inteligentemente como valores com conteúdo económico, social, político, cultural, humano – e, contrariamente aos desejos do referido produtor de previsões, a festa foi mesmo verdadeiramente popular (sem aspas) e por ela perpassaram permanentemente os verdadeiros ideais de Abril (também sem aspas).

Não é necessário recorrer a sofisticadas análises nem a revolucionárias tecnologias para localizar os ideais de Abril e aqueles que, hoje, vinte e seis anos passados, são (ou não são) seus representantes e portadores.
É fácil verificar que os ideais de Abril não estão na política de direita que fecha as portas do futuro à juventude, que vende pedaços da soberania nacional, que provoca o desemprego e a precariedade do emprego, que insulta centenas de milhar de cidadãos com pensões e reformas de miséria, que promove, através de uma cada vez mais injusta repartição da riqueza, o agravamento das desigualdades e das exclusões...

É fácil verificar que os ideais de Abril estão no lado oposto a esse, estão com os que lutam contra a política de direita e por uma alternativa política de esquerda, estão com os milhares de homens, mulheres e jovens – trabalhadores e estudantes - que se manifestam nas ruas e recorrem à greve em defesa dos seus interesses e direitos, estão com os que no próximo lº de Maio virão à rua dizer que não desistem de considerar que Abril é o seu dia e a semente do seu futuro – e que o fazem todos os dias do ano e todos os anos, de forma especial, no 25 de Abril e no lº de Maio.


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000