Recrucificar e recolonizar
nos 500 anos

Por Paulo Maldos



Dia 17 de Março de 2000, pela manhã. Algumas dezenas de trabalhadores, observados e sob a orientação de um punhado de autoridades, realizam os movimentos, com grandes camiões e guindastes, para a colocação da nova cruz na terra indígena de Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália, extremo sul da Bahia, onde foi realizada a Primeira Missa no Brasil.
Policiais federais e militares «protegem» o grupo e alguns poucos índios observam de longe.

As dimensões do monumento, idealizado pelo escultor Mário Cravo, a convite do Governo Federal:

Altura: 17 metros.
Comprimento dos braços
: 5 metros.
Largura
: 50 x 50 cm.
Peso
: 1500 kg.
Material
: chapa de aço inoxidável de 1/4, conhecida tecnicamente como 317 L
Base
: feita por grandes blocos de granito verde, amarelo e azul, com recorte para formar um altar, num total de 60 toneladas.
Preço total da obra
: R$ 500 mil.

Esse monumento gigantesco foi colocado numa pequena comunidade indígena, extremamente pobre, com pouco mais de 300 famílias, aproximadamente 2000 pessoas. Foi construído pelo Governo Federal para «celebrar os 500 anos do Descobrimento do Brasil». Se tudo correu como estava programado, no dia 26 de Abril, durante a grande missa da CNBB, o presidente da República procedeu à inauguração, com a presença do presidente de Portugal e do rei da Espanha.
O que é este grande totem erguido brutalmente sobre uma comunidade tão pequena, cercado de vazio, num descampado árido e solitário? Porque razão essa estrutura metálica, tão imponente, foi fincada numa terra indígena, tão dilacerada pela pobreza?
A imagem monumental gera um sentimento de impotência em quem o vê. Gera medo, passividade, angústia frente a algo opressivo, absoluto, indestrutível, perene, eterno: aço e granito em grande quantidade.
A enorme base, nas cores da bandeira brasileira, que se faz também de altar, funde de novo, simbolicamente, o Estado e a Religião Católica e serve para reafirmar a ocupação e a posse, por parte dos invasores, do território daquela frágil comunidade indígena.
Há uma sensação de fascismo no ar, com sua carga de triunfalismo, de completa anulação da escala humana e comunitária. A arrogância feita de metal e pedra agride e anula tudo ao redor, como os efeitos de uma bomba ou de um gás paralisante.
Em relação à comunidade indígena Pataxó de Coroa Vermelha, obrigada a aceitá-lo sem conhecer, o conjunto invasor significa a afirmação do poder do Estado, da sociedade europeia, ocidental e pretensamente cristã.
Em relação aos demais povos indígenas do Brasil, para onde o monumento necessariamente espalha o seu significado, ele projecta a mesma sombra: a do controle opressor do Estado nacional, espalha a exigência da obediência, espalha o constrangimento e o medo frente ao poder.
Em relação ao símbolo utilizado «a cruz de Cristo» o Estado recolheu esta imagem, cara a uma grande parcela do povo brasileiro, ampliou-a, deformou-a até o limite dos materiais utilizados, deu-lhe uma rigidez de couraça, um tamanho descomunal, um brilho ofuscante, impôs as cores do próprio Estado (verde, amarelo e azul); e agora utiliza-a para os seus próprios fins.
O Governo Federal, através do monumento de Coroa Vermelha e do seu espírito autoritário, «feito para durar mais cinco séculos», parece recrucificar o próprio Cristo, manipulando seu o símbolo mais profundo. Aliado a isso, revela a intenção de recolonizar os territórios indígenas por esta mesma extensão de tempo.
Da mesma forma que constrangeu a comunidade indígena de Coroa Vermelha a aceitar o monumento, o governo de Fernando Henrique Cardoso constrangeu os bispos brasileiros da Igreja Católica a inaugurá-lo.

 

Festejar o quê?

Por ordem do governo estadual, foi destruído no passado dia 4 um monumento erigido pelos índios pataxós na reserva de Coroa Vermelha. Em plena comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, este acto simboliza de forma emblemática a forma como os índios continuam a ser tratados pelas autoridades brasileiras.
A população indígena no país reduziu-se de mais 5 milhões de pessoas, à época do Descobrimento, para cerca de 270 mil na actualidade. Espoliados nos seus direitos, os índios continuam a lutar, pagando muitas vezes com a própria vida, pelo direito a um espaço em que possam viver condignamente, em harmonia com a natureza. 500 anos depois, os índios do Brasil não têm quase nada a comemorar neste mês de Abril.


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000