O feitiço contra o feiticeiro
no sequestro de Elian

Por Miguel Urbano Rodrigues



Transcorridos cinco meses, o sequestro do garoto Elián González continua a ser o grande acontecimento da vida cubana.
A luta pelo seu regresso é assumida como uma batalha que envolve a nação na sua totalidade, tornando-se fonte de fenómenos políticos e sociais muito complexos.

A criança, tratada como objecto pela mafia cubana de Miami, foi submetida a pressões que, segundo os próprios psicólogos e psiquiatras dos Estados Unidos, causaram já estragos que deixaram na sua personalidade sequelas possivelmente irreparáveis. As últimas imagens transmitidas pela televisão norte-americana mostram um menino agressivo e triste, desconfiado, muito diferente do Elián meigo e sorridente que vivia feliz na pequena cidade cubana de Cardenas.
Mas, à margem dos aspectos humanos do caso, o sequestro gerou no plano político situações que, desde o início, produziram efeitos mal avaliados em Washington. O governo norte-americano não compreendeu logo que o combate pela recuperação do menino contribuiu para rejuvenescer a Revolução, fazendo-a de certa maneira regressar às suas origens. A Revolução Cubana voltou a ser jovem.
Seria necessário subir ao ano 59, depois da entrada do Exército rebelde em Havana, ou aos dias posteriores à vitoria de Girón para se encontrar atmosfera comparável à que se respira hoje em Cuba.
Pioneiros, estudantes do ensino secundário, universitários, camponeses, operários, donas de casa são submetidos a uma prova inédita. É uma experiência que lhes ensina algo que não se aprende nos livros, uma experiência que os faz passar da teoria à prática, que transforma a militância. Esta deixa de ser um dever, para se tornar acto espontâneo, impulso que traz prazer, que encanta. Milhares de jovens, nos desfiles, nas concentrações em frente do Escritório de Interesses dos EUA à beira do Malecón, nas tribunas abertas, nas mesas redondas dirigem-se pela primeira vez às massas. Fazem descobertas importantes. Descobrem que o vendaval de solidariedade e fraternidade lhes proporciona uma intensa alegria, que o sentimento da cubanidade é fonte de orgulho. Uma geração de novos quadros, de futuros lideres está a ser forjada nestas semanas.
O governo dos EUA com a sua atitude amoral e irracional contribuiu para unir mais os cubanos, para fazer regressar a Revolução às suas origens épicas.

Outra situação inesperada foi a resultante da viagem das avós paterna e materna do pequeno Elián.
Num país onde a informação e a desinformação são determinantes como factores capazes de suscitar drásticos e súbitas mudanças na opinião publica, a viagem dessas duas mulheres cubanas criou inesperadamente situações que derrotaram a estratégia sinuosa e contraditória que o governo norte-americano vinha adoptando na utilização do caso Elián como episódio da guerra não declarada contra Cuba.
As avós, Mariela e Raquel, ao aparecerem nas cadeias de televisão emocionaram milhões de norte-americanos. O povo dos EUA, como qualquer outro, tem princípios, respeita valores universais. Ora, pela primeira vez, o sequestro de Elián entrou com as avós torrencialmente nas casas das famílias norte-americanas. Desencadeou uma vaga de emoção. O interesse foi tamanho que a televisão não pôde retirar o assunto dos horários de ponta.
A audiência era peculiar, tal como o tema. Este não suscitava o tipo de interesse mórbido provocado pelos amores da princesa Diana ou a vida sexual do presidente Clinton. O que ocorreu foi um fenómeno similar ao resultante das reportagens sobre o Vietname e a Somália durante a agressão dos EUA àqueles países.
A verdade, agora como então, derrotou a mentira. As palavras das avós, a autenticidade daquelas mulheres, espontâneas como guajiras marcadas pela origem camponesa, inviabilizaram o jogo político de uma direita cínica, corrupta e ambiciosa.
Até aí o jogo político impunha uma ambiguidade oficial que contribuía para aumentar o suspense e a confusão. O Serviço de Emigração, órgão federal, havia tornado público que o menino seria devolvido a Cuba, ao pai. Mas a tomada de posição, frouxa, não se traduziu em factos. A data anunciada passou e o garoto continuou nas mãos do tio paterno, virtualmente sequestrado, recebendo visitas frequentes dos congressistas Diaz Balart e Eliana Roth, figuras exponenciais da chamada mafia de Miami. O governo Clinton deixou correr os dias e as semanas, temeroso da agressividade da extrema direita cubano-americana e do seu peso eleitoral.
Foi um erro de cálculo. De repente, as avós mudaram o panorama. Os telespectadores perceberam que estavam a ser enganados. A defesa do sequestro de Elián passou a ser uma má jogada eleitoral. Deixou de atrair votos.


No Congresso, o projecto de atribuição da nacionalidade ao menino foi arquivado.
Os media divulgaram os esforços da mafia de Miami para sabotar o encontro de Elián com as avós e a cumplicidade da freira que na sua própria casa violou grosseiramente os compromissos assumidos pelo Serviço de Emigração e o Departamento de Justiça.
Quase simultaneamente soube-se que o tio sequestrador era um alcoólico e que os primos de Miami tinham um cadastro pesado. As revelações sobre os antecedentes do homem que organizara a fuga de Cuba da mãe de Elián - com a qual casara após o divórcio - e do garoto também impressionaram negativamente a opinião publica norte-americana. O indivíduo, afinal, era um rufião, que vivia de negócios escuros, sem trabalhar. O oposto à imagem do pai, cuja firmeza de carácter e amor pelo filho cativaram o americano da classe média.
De repente, as manobras eleitorais de políticos venais como o senador Jesse Helms e o congressista Burton - autores da lei anti-cubana que leva os seus nomes - passaram a ser politicamente prejudiciais para as suas ambições, porque a mafia de Miami ficou sem máscara.
As sondagens revelaram que mais de 60% dos norte-americanos se pronunciam agora pela devolução imediata do menino ao pai.
A reviravolta assumiu tais proporções que a própria secretária de Estado, a sra. Madeleine Albright, sentiu a necessidade de tomar posição, defendendo o regresso de Elián a Cuba. A procuradora de Justiça dos EUA, Janet Reno, pelo seu lado, adoptou desde o início do caso uma postura correcta, favorável à devolução da criança. Cabe perguntar, então, por que continua Elián em Miami sob custódia - eufemismo que oculta o sequestro - de um tio avô alcoólico?
Se o presidente Clinton fosse um pouco mais inteligente e tivesse capacidade decisória faria o necessário para que Elián regressasse a Cuba imediatamente.
Esse gesto, esperado, tarda porque a Administração norte-americana sabe que o desfecho da saga dramática do menino representará uma grande vitória política para Cuba. E isso será doloroso para a Casa Branca e o Congresso que vão sair mal do episódio. Adiando a solução, aguardam um momento mais favorável. Que não chegará.
O sequestro do menino foi desde o início uma monstruosidade jurídica e um atentado aos direitos humanos. A estupidez da Administração transformou o crime numa derrota política interna para o establishment, fazendo do povo cubano o protagonista de uma nova Ilíada.

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Solidariedade

Um abaixo-assinado com cerca de 3000 assinaturas, exigindo aos EUA a entrega imediata de Elián González ao pai, foi recentemente entregue na embaixada norte-americana em Lisboa por uma delegação de dirigentes da Associação de Amizade Portugal-Cuba.
Para os representantes da Associação não existe qualquer fundamento para que a criança continue sequestrada nos Estados Unidos, por pressão da mafia de cubanos residentes em Miami, já que este procedimento viola todas as normas sobre a tutela de menores. A delegação alertou ainda para o facto de esta situação estar a pôr em risco a saúde mental do menor.
Na ocasião, a Direcção da Associação expressou também o seu voto para que termine o bloqueio norte-americano a Cuba.


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000