Onde está Anahita ?
Por Zillah Branco
Conheci no ano de 1980 uma mulher que, vencendo todos
os preconceitos religiosos, sociais e políticos, foi Ministro da
Educação no Afeganistão. Pode-se pensar que era uma figura
agressiva que impõe respeito pela força e a autoridade para
alcançar tantas difíceis vitórias. Ao contrário, dela emanava
uma doçura maternal feminina que combinava perfeitamente com a
beleza do seu rosto e do seu porte.
Era uma MULHER, tão forte como simples, tão inteligente como
compreensiva, tão sábia como atenta às palavras e ao
sentimento do seu povo. Até hoje, vinte anos passados,
emociono-me com a lembrança que me marcou e que guardo como o
mais alto exemplo de uma cidadã.
Perdi-a no vendaval da queda da União Soviética que deixou
órfãos em várias partes do mundo, sobretudo no sofrido
Afeganistão e nos países do Terceiro Mundo. Seu nome é Anahita
Petzabad. Onde estará?
Numa entrevista gentil contou, em traços largos mas com uma
caracterização tão precisa que substituía as imagens, a
história das mulheres afegãs vitimadas pelo férreo domínio
machista ao serviço de um poder absoluto apoiado em dois
pilares: a religião e a dependência económica. Através da
religião as mulheres foram submetidas às crenças que as
obrigavam a aceitar a ignorância e a submissão; pela
dependência económica tornavam-se objectos domésticos sujeitos
à comercialização.
A rapariga crescia fechada no interior da casa que não tem
janelas abertas para a rua e, quando adulta, cobria-se da cabeça
aos pés com o seu tchadari (um véu plissado) que na
altura dos olhos tem um crivo trabalhado com espaços de 2
milímetros quadrados que lhe permitem ver. Como uma grade de
prisão permanente com um quadriculado mínimo. O seu primeiro
«dono» era o pai, substituído pelos irmãos, mesmo os mais
pequenos. Nada fazia sem autorização prévia e sem companhia.
Depois era-lhe escolhido um marido que oferecia vantagens
económicas ao pai e à família. Era o seu segundo «dono»,
substituído pelos filhos na sua ausência.
Germes de mudança
Os textos religiosos
fundamentavam esta discriminação imposta às mulheres que
deveriam apenas servir para procriar e cuidar da família.
Qualquer desobediência era punida com crueldade, podendo chegar
à morte por degola em presença da família em caso de
infidelidade da mulher.
Fechada em casa, sem acesso à instrução, a mulher nunca
poderia ter uma profissão e nem mesmo a capacidade psicológica
para exercer qualquer função social. Dependia totalmente do que
os seus «donos» lhe destinassem para viver.
Assim explicava Anahita concluindo: «O feudalismo que vivemos no
Afeganistão não é o da nobreza europeia, com os seus condes e
condessas». Certo, era o feudalismo que os camponeses europeus
suportavam, agravado por uma cultura que excluía a mulher do
convívio social. E mais, um feudalismo que se mantinha em pleno
século XX. E se mantém ainda hoje neste final de século.
No entanto, os movimentos políticos e sociais que se apoiavam no
socialismo existente na União Soviética para vencer o
colonialismo britânico primeiro e, depois da independência
nacional, os sucessivos governos fantoches que mantinham o poder
nas mãos de uma oligarquia afegã, introduziram os germes da
mudança cultural que levaria todo o povo, e muito especialmente
as mulheres, à conquista da condição de cidadania que abria as
portas à liberdade.
À sombra dos tchadari as mulheres que aderiram ao
Movimento Democrático caminhavam clandestinamente levando
mensagens. Seguiam com as caravanas nómades, a pé, atravessando
o deserto e cruzando as fronteiras. Muitas foram presas,
torturadas e mortas. Mas muitas mais sobreviveram, como Anahita,
que se tornou Ministro da Educação quando o Partido
Democrático Popular chegou ao poder com o programa
revolucionário.
Regresso ao passado
com o apoio dos EUA
Anahita dizia que as
mudanças sociais deveriam obedecer ao ritmo de evolução
cultural da população. Qualquer atropelo, como por exemplo a
criação de escolas de alfabetização para homens e mulheres
juntos, poderia provocar as condenações de infidelidade para as
mulheres vistas em companhia dos seus colegas. Ela mostrava
fotografias dos rituais de degola que ainda eram praticados, onde
se via a mulher morta sobre um tapete, com a roupa com que fora
vestida para que seu marido e filhos cumprissem as imposições
da tradição cultural. Anahita não evitava as lágrimas ao
mostrar o «significado do feudalismo no Afeganistão», dizia.
«É uma dominação feroz que exige muito sacrifício e uma
grande paciência para ser eliminado. Para que a revolução
prossiga, para que crie raízes que assegurem o seu futuro, é
necessário que ela seja aceite no profundo sentir da
população». A sua arma revolucionária era o respeito humano,
o carinho com o seu povo por tantos séculos esmagado.
Em 1988, por determinação de Gorbatchov, as tropas soviéticas
deixaram o Afeganistão sem o apoio ainda necessário. Os «mudjahidin»,
sustentados pelo Paquistão e pelos Estados Unidos, como escreveu
Dominique Vallaud no «Dictionnaire Historique» (Librairie
Arthème Fayard, 1995, Paris) aceleraram o processo terrorista,
que em 1980 já havia destruído 1100 escolas e postos de saúde,
e em 1992 venceram o Governo do PDPA assassinando os seus
líderes.
O feudalismo afegão, com toda a crueldade que o caracteriza,
voltou a impor a sua sombra ao povo que com tanto sacrifício
defendia os germes da democracia para um dia caminhar para o
socialismo. E foi a mais poderosa nação capitalista, com os
seus Presidentes que ousam falar em nome dos Direitos Humanos e
usam o pretexto de combater o terrorismo mundial para invadir os
países que os contrariam, foram os Estados Unidos da América
que propiciaram a destruição de uma das mais belas páginas da
história de luta das mulheres contra as várias formas de
opressão, uma das mais valiosas experiências da humanidade pela
transformação gradual da cultura no caminho da liberdade dos
cidadãos.
Onde estará Anahita Petzabad? Jamais a esqueceremos, à sua
beleza feminina profunda e à sua obra revolucionária.