Sociedade da Informação:
Histórias de 30 minutos à superfície


Em meia hora por dia, a nossa relação com a informação só pode ser esta: abandonamos os sentidos, derrubados no sofá.

Dormir no limite do suavemente exigido vale 8 horas. Pôr os putos de pé e em farda – para além de uma valente dor de cabeça – implica pelo menos 1 hora. Alimentar no limite do biologicamente necessário, juntamente com a peregrinação quotidiana para o trabalho – transporte público ou privado, ida e volta – vale outras 3 horas. Trabalhar 8 horas por dia vale isso mesmo, uma promessa de cansaço e uma reforma adoentada. Levar e trazer o puto da escola vale 1 hora. Pagar as contas da casa, ir ao supermercado, fazer o jantar, arrumar a casa combatendo a pocilga, reciclar a roupa, lavar a louça depois do jantar, dar banho aos putos, engomar a camisa ou aprumar o uniforme obrigatório para o dia seguinte, a tudo isto... enfim, sejamos utópicos e atribuamos apenas 1.30 h em cada 24. O dia parece chegar ao fim, mas, é verdade, temos ainda que tratar do trabalho que trouxemos para casa – mais 1 hora.


8+1+3+8+1+1.30+1=
= Falta meia hora
para o dia acabar.

É assim que acontece com milhares de portugueses. É assim que a sociedade da informação, com todas as suas vantagens, se apresenta com todos os seus limites. E esses limites são os mesmos da sociedade moderna capitalista: péssimos ordenados, empregos que totalizam vidas, empregos quando os há, a insegurança do trabalho precário, os desencontros familiares provocados por horários flexibilizados, etc.

Falta meia hora para o dia acabar. Em meia hora tentaremos ler as páginas de um livro de digestão fácil ou, simplesmente, o jornal de ontem resgatado lá no escritório. Em meia hora ousamos aguardar por um último telejornal. Em meia hora observamos o puto que se entregou há muito aos lençóis da cama. Em meia hora recordamos que nem tivemos tempo de perguntar ao puto, ou ao companheir@, como é que correu o dia, como é que vão as aulas ou escorre o trabalho. Em meia hora telefonamos ao avô, que já velhinho repousa no lar. Em meia hora inquietamo-nos com a gestão do orçamento familiar, prevemos o que temos para fazer amanhã. Em meia hora, ligamos a TV e assistimos a uma porno-chachada qualquer e a uma série infindável de anúncios que ameaçam prolongar o tempo, quando já só queremos que o dia acabe. Em meia hora, novamente, lembramo-nos de como terá sido o dia do puto, enquanto lemos o panfleto que recebemos no metro e que alertava para o perigo da toxicodependência entre os jovens. Em meia hora pensamos em fazer amor, mas não somos um casal rapidinho. Em meia hora pensamos em nós mesmos.

Pedem-nos para vivermos a nossa vida em meia hora por dia. Pedem-nos que eduquemos os nossos filhos – bem-comportadinhos para não roubarem uns míseros rebuçados no supermercado – em meia hora por dia. Pedem-nos que cuidemos dos idosos paternos em meia hora por dia. Pedem-nos que procriemos, porque o mercado precisa de uma reserva de mão-de-obra com que vá baixando os salários, em meia hora por dia. Pedem-nos que nos instruamos e aproveitemos as hipóteses oferecidas pela sociedade da informação, em meia hora por dia. Em meia hora por dia, a nossa relação com a informação só pode ser esta: abandonamos os sentidos, derrubados no sofá, no conforto do banho não tomado ao fim do dia de trabalho e deixamos que nos penetrem com tudo o que quiserem. Não escolhemos, cedemos inertes. Quanto muito, a nossa liberdade, ao longo de um dia, limita-se à panóplia do zapping.


E se...?

E se, saindo da sombra de uma pasta de governo pomposamente intitulada de Sociedade de Informação, o PSD decidisse partir com seriedade para o debate acerca da redução do horário de trabalho? E se, largando a palavra como fraude do real, o PS tratasse de ousar um pingo de esquerda – moderna ou pós-moderna, como eles a queiram – e, preocupando-se honestamente com a democratização da cultura e da informação (não é isso que propala a tão em voga nova economia?), se juntasse ao PCP, ao PEV e ao BE, nas propostas de redução do horário de trabalho?

Partilhava-se socialmente o emprego – não com prejuízo salarial, porque isso seria a ferradura para lá do cravo – promovia-se o lazer, a arte e o amor. Que é como quem diz, a liberdade. A liberdade deixava de ser um direito consagrado na constituição e entreva pelas casas dentro, pelos cafés do bairro, pelas livrarias e pelos próprios sítios de emprego. Falamos já de uma revolução? Falamos somente de nos concederem um pouco mais do que meia hora de vida, em busca do lazer prometido pelo mítico liberalismo. Para irmos além desta modernidade castradora e dos mitos da sociedade da informação. E, já agora, um abraço aos meus amigos que – muitos – não os vejo faz tempo.


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000